— Ah! meu pai! meu pai!... tudo está perdido! — exclamou Isaura, pendendo a linda e pura fronte sobre o peito de Miguel. — Já nenhuma esperança nos resta!...
— Quem sabe, minha filha! — replicou gravemente o pai. — Não desanimemos; grande é o poder de Deus!...
7
Na fazenda de Leôncio havia um grande salão toscamente construído, sem forro nem soalho, destinado ao trabalho das escravas que se ocupavam em fiar e tecer lã e algodão.
Os móveis deste lugar consistiam em tripeças, tamboretes, bancos, rodas de fiar, dobadouras, e um grande tear colocado a um canto.
Ao longo do salão, defronte de largas janelas guarnecidas de balaústres, que davam para um vasto pálio interior, via-se postada uma fila de fiandeiras. Eram de vinte a trinta negras, crioulas e mulatas, com suas tenras crias ao colo ou pelo chão a brincarem em redor delas. Umas conversavam, outras cantarolavam para encurtarem as longas horas de seu fastidioso trabalho. Viam-se ali caras de todas as idades, cores e feitios, desde a velha africana, trombuda e macilenta, até à roliça e luzidia crioula, desde a negra brunida como azeviche até à mulata quase branca.
Entre estas últimas distinguia-se uma rapariguinha, a mais faceira e gentil que se pode imaginar nesse gênero. Esbelta e flexível de corpo, tinha o rostinho mimoso, lábios um tanto grossos, mas bem modelados, voluptuosos, úmidos, e vermelhos como boninas que acabam de desabrochar em manhã de abril. Os olhos negros não eram muito grandes, mas tinham uma viveza e travessura encantadoras. Os cabelos negros e anelados podiam estar bem na cabeça da mais branca fidalga de além-mar. Ela porém os trazia curtos e mui bem frisados à maneira dos homens. Isto longe de tirar-lhe a graça, dava à sua fisionomia zombeteira e espevitada um chispe original e encantador. Se não fossem os brinquinhos de ouro, que lhe tremiam nas pequenas e bem molduradas orelhas, e os túrgidos e ofegantes seios que como dois trêfegos cabritinhos lhe pulavam por baixo de transparente camisa, tomá-la-íeis por um rapazote maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era esta criança, que tinha o bonito nome de Rosa.
No meio do sussurro das rodas, que giravam, das monótonas cantarolas das fiandeiras, do compasso estrépito do tear, que trabalhava incessantemente, dos guinchos e alaridos das crianças, quem prestasse atento ouvido, escutaria a seguinte conversação, travada timidamente e a meia voz em um grupo de fiandeiras, entre as quais se achava Rosa.
— Minhas camaradas, — dizia a suas vizinhas uma crioula idosa, matreira e sabida em todos os mistérios da casa desde os tempos dos senhores velhos, — agora que sinhô velho morreu, e que sinhá Malvina foi-se embora para a casa de seu pai dela, é que nós vamos ver o que e rigor de cativeiro.
— Como assim, tia Joaquina?!...
— Como assim!... vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô velho não era de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado — atrás de mim virá quem bom me fará. — Este sinhô moço Leôncio... hum!... Deus queira que me engane... quer-me parecer que vai-nos fazer ficar com saudade do tempo de sinhô velho...
— Cruz! ave Maria!... não fala assim, tia Joaquina!... então é melhor matar a gente de uma vez...
— Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a pouco nós tudo vai pra roça puxar enxada de sol a sol, ou pra o cafezal apanhar café, e o pirai do feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café, e mais café, que é o que dá dinheiro.
— Também, a dizer a verdade, não sei o que será melhor, — observou outra escrava, — se estar na roça trabalhando de enxada, ou aqui pregada na roda, desde que amanhece até nove, dez horas da noite. Quer-me parecer que lã ao menos a gente fica mais à vontade.
— Mais à vontade?!.., que esperança! — exclamou uma terceira. — Antes, aqui, mil vezes! aqui ao menos a gente sempre está livre do maldito feitor.
— Qual, minha gente! — ponderou a velha crioula — tudo é cativeiro. Quem teve a desgraça de nascer cativo de um mau senhor, dê por aqui, dê por acolá, há de penar sempre. Cativeiro é má sina; não foi Deus que botou no mundo semelhante coisa, não; foi invenção do diabo. Não vê o que aconteceu com a pobre Juliana, mãe de Isaura?
— Por falar nisso, — atalhou uma das fiandeiras, — o que fica fazendo agora a Isaura?... enquanto sinhá Malvina estava aí, ela andava de estadão na sala, agora...
— Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, — acudiu Rosa com seu sorriso maligno e zombeteiro.
— Cala a boca, menina! — bradou com voz severa a velha crioula.
— Deixa dessas falas. Coitada da Isaura. Deus te livre a você de estar na pele daquela pobrezinha! se vocês soubessem quanto penou a pobre da mãe dela! ah! aquele sinhô velho foi um home judeu mesmo, Deus te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leôncio a coisa vai tomando o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor desta Rosa mas inda mais bonita e mais bem feita...
Rosa deu um muxoxo, e fez um momo desdenhoso.
— Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! — continuou a crioula velha. — O ponto foi sinhô velho gostar dela... eu já contei a vocês o que é que aconteceu. Juliana era uma rapariga de brio, e por isso teve de penar, até morrer. Nesse tempo o feitor era esse siô Miguel, que anda aí, e que é pai de Isaura. Isso é que era feitor bom!... todo mundo queria ele bem, e tudo andava direito. Mas esse siô Francisco, que ai anda agora, cruz nele!... é a pior peste que tem botado os pés nesta casa. Mas, como ia dizendo, o siô Miguel gostava muito de Juliana, e trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para forrar ela. Mas nhonhô não esteve por isso, ficou muito zangado, e tocou o feitor para fora.
Também Juliana pouco durou; pirai e serviço deu co’ela na cova em pouco tempo. Picou aí a pobre menina ainda de mama, e se não fosse sinhá velha, que era uma santa mulher, Deus sabe o que seria dela!... também, coitada!... antes Deus a tivesse levado!...
— Por quê, tia Joaquina?...
— Porque está-me parecendo, que ela vai ter a mesma sina da mãe...
— E o que mais merece aquela impostora? — murmurou a invejosa e malévola Rosa. — Pensa que por estar servindo na sala é melhor do que as outras, e não faz caso de ninguém. Deu agora em namorar os moços brancos, e como o pai diz que há de forrar ela, pensa que e uma grande enhora. Pobre do senhor Miguel!... não tem onde cair morto, e há de ter para forrar a filha!
— Que má língua é esta Rosa! — murmurou enfadada a velha crioula, relanceando um olhar de repreensão sobre a mulata. — Que mal te fez a pobre Isaura, aquela pomba sem fel, que com ser o que e, bonita e civilizada como qualquer moça branca, não é capaz de fazer pouco caso de ninguém?... Se você se pilhasse no lugar dela, pachola e atrevida como és, havias de ser mil vezes pior.
Rosa mordeu os beiços de despeito, e ia responder com todo o atrevimento e desgarre, que lhe era próprio, quando uma voz áspera e atroadora, que, partindo da porta do salão, retumbou por todo ele, veio pôr termo à conversação das fiandeiras.
— Silêncio! — bradava aquela voz. — Arre! que tagarelice!... pa— rece que aqui só se trabalha de língua!...
Um homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, de fisionomia dura e repulsiva, apresenta-se à porta do salão, e vai entrando. Era o feitor. Acompanhava-o um mulato ainda novo, esbelto e aperaltado, trajando uma bonita libré de pajem, e conduzindo uma roda de fiar. Logo após eles entrou Isaura.
As escravas todas levantaram-se e tomaram a bênção ao feitor. Este mandou colocar a roda em um espaço desocupado, que infelizmente para Isaura ficava ao pé de Rosa.
— Anda cá, rapariga; — disse o feitor voltando-se para Isaura. — De hoje em diante é aqui o teu lugar; esta roda te pertence, e tuas parceiras que te dêem tarefa para hoje. Bem vejo que te não há de agradar muito a mudança; mas que volta se lhe há de dar?... teu senhor assim o quer. Anda lá; olha que isto não é piano, não; é acabar depressa com a tarefa para pegar em outra. Pouca conversa e muito trabalhar...