Выбрать главу

— Que pretendes fazer com ela, Isaura? que louco pensamento é o teu?...

— Dê-me essa faca, meu pai; eu não usarei dela senão em caso extremo; quando o infame vier lançar-me as mãos para deitar-me esses ferros, farei saltar meu sangue ao rosto vil do algoz.

— Não, minha filha; não serão necessários tais extremos. Meu coração já adivinhava tudo isto, e já tenho tudo prevenido. O dinheiro, que não serviu para alcançar a tua liberdade, vai agora prestar-nos para arrancar-te às garras desse monstro. Tudo está já disposto, Isaura. Fujamos.

— Sim, meu pai, fujamos; mas como? para onde?

— Para longe daqui, seja para onde for; e já, minha filha, enquanto não suspeitem coisa alguma, e não te carregam de ferros.

— Ah! meu pai, tenho bem medo; se nos descobrem, qual será a minha sorte!...

— A empresa é arriscada, não posso negar-te; mas ânimo. Isaura; é nossa única tábua de salvação; agarremo-nos a ela com fé, e encomendemo-nos à divina providência. Os escravos estão na roça; o feitor levou para o cafezal tuas companheiras, teu senhor saiu a cavalo com o André; não há talvez em toda a casa senão alguma negra lá pelos cantos da cozinha. Aproveitemos a ocasião, que parece mesmo nos vir das mãos de Deus, no momento em que aqui estou chegando. Eu já preveni tudo. Lá no fundo do quintal à beira do rio está amarrada uma canoa; é quanto nos basta. Tu sairás primeiro e irás lá ter por dentro do quintal; eu sairei por fora alguns instantes depois e lá nos encontraremos. Em menos de uma hora estaremos em Campos, onde nos espera um navio, de que é capitão um amigo meu, e que tem de seguir viagem para o Norte nesta madrugada. Quando romper o dia, estaremos longe do algoz que te persegue. Vamo-nos, Isaura; talvez por esse mundo encontremos alguma alma piedosa, que melhor do que eu te possa proteger.

— Vamo-nos, meu pai; que posso eu recear?... posso acaso ser mais desgraçada do que já sou?...

Isaura, cosendo-se com a sombra do muro, que rodeava o pátio, abriu o portão, que dava para o quintal, e desapareceu. Momentos depois Miguel rodeando por fora os edifícios costeava o quintal, e achava-se com ela à margem do rio.

A canoa vogando sutilmente bem junto à barranca, impelida pelo braço vigoroso de Miguel, em poucos minutos perdeu de vista a fazenda.

10

Já são passados mais de dois meses depois da fuga de Isaura, e agora, leitores, enquanto Leôncio emprega diligências extraordinárias e meios extremos, e desatando os cordões da bolsa, põe em atividade a polícia e uma multidão de agentes particulares para empolgar de novo a presa, que tão sorrateiramente lhe escapara, façamo-nos de vela para as províncias do Norte, onde talvez primeiro que ele deparemos com a nossa fugitiva heroína.

Estamos no Recife. É noite e a formosa Veneza da América do Sul, coroada de um diadema de luzes, parece surgir dos braços do oceano, que a estreita em carinhoso amplexo e a beija com amor. É uma noite festiva: em uma das principais ruas nota-se um edifício esplendidamente iluminado, para onde concorre grande número de cavalheiros e damas das mais distintas e opulentas classes. É um lindo prédio onde uma sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos saraus. Alguns estudantes dos mais ricos e elegantes, também costumam descer da velha Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os esplendores e harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e aos meigos olhares e angélicos sorrisos das belas e espirituosas pernambucanas, esquecerem por algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos praxistas.

Suponhamos que também somos adeptos daquele templo de Terpsícore, entremos por ele a dentro, e observemos o que por aí vai de curioso e interessante. Logo na primeira sala encontramos um grupo de elegantes mancebos, que conversam com alguma animação. Escutemo-los.

— É mais uma estrela que vem brilhar nos salões do Recife, — dizia Álvaro, — e dar lustre a nossos saraus. Não há ainda três meses, que chegou a esta cidade, e haverá pouco mais de um, que a conheço. Mas creia-me, Dr. Geraldo, é ela a criatura mais nobre e encantadora que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma fada, é um anjo, é uma deusa!...

— Cáspite! — exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deusa!... São portanto três entidades distintas, mas por fim de contas verás que não passa de uma mulher verdadeira. Mas dize-me cá, meu Álvaro; esse anjo, fada, deusa, mulher ou o que quer que seja, não te disse de onde veio, de que família é, se tem fortuna, etc., etc., etc.?

— Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder-te que veio do céu, que é da família dos anjos, e que tem uma fortuna superior a todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e inteligente, e uma beleza incomparável. Mas sempre te direi que o que sei de positivo a respeito dela é que veio do Rio Grande do Sul em companhia de seu pai, de quem é ela a única família; que seus meios são bastantemente escassos, mas que em compensação ela é linda como os anjos, e tem o nome de Elvira,

— Elvira! — observou o terceiro cavalheiro — bonito nome na verdade!... mas não poderás dizer-nos, Álvaro, onde mora a tua fada?...

— Não faço mistério disso; mora com seu pai em uma pequena chácara no bairro de Santo Antônio, onde vivem modestamente, evitando relações, e aparecendo mui raras vezes em público. Nessa chácara, escondida entre moitas de coqueiros e arvoredos, vive ela como a violeta entre a folhagem, ou como fada misteriosa em uma gruta encantada.

— É célebre! — retorquiu o doutor — mas como chegaste a descobrir essa ninfa encantada, e a ter entrada em sua gruta misteriosa?

— Eu vos conto em duas palavras. Passando eu um dia a cavalo por sua chácara, avistei-a sentada em um banco do pequeno jardim da frente. Surpreendeu-me sua maravilhosa beleza. Como viu que eu a contemplava com demasiada curiosidade, esgueirou-se como uma borboleta entre os arbustos floridos e desapareceu. Formei o firme propósito de vê-la e de falar-lhe, custasse o que custasse. Por mais, porém, que indagasse por toda a vizinhança, não encontrei uma só pessoa que se relacionasse com ela e que pudesse apresentar-me. Indaguei por fim quem era o proprietário da chácara, e fui ter com ele. Nem esse podia dar-me informações, nem servir-me em coisa alguma. O seu inquilino vinha todos os meses pontualmente adiantar o aluguel da chácara; eis tudo quanto a respeito dele sabia. Todavia continuei a passar todas as tardes por defronte do jardim, mas a pé para melhor poder surpreendêla e admirá-la; quase sempre, porém, sem resultado. Quando acontecia estar no jardim, esquivava-se sempre às minhas vistas como da primeira vez. Um dia, porém, quando eu passava, caiu-lhe o lenço ao levantar-se do banco; a grade estava aberta; tomei a liberdade de penetrar no jardim, apanhei o lenço, e corri a entregar-lho, quando já ela punha o pé na soleira de sua casa. Agradeceu-me com um sorriso tão encantador, que estive em termos de cair de joelhos a seus pés; mas não mandou-me entrar, nem fez-me oferecimento algum.

— Esse lenço, Álvaro, — atalhou um cavalheiro, — decerto ela o deixou cair de propósito, para que pudesses vê-la de perto e falar-lhe. É um apuro de romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.

— Não creio; não há naquele ente nem sombra de coquetterie; tudo nela respira candura e singeleza. O certo é que custei a arrancar meus pés daquele lugar, onde uma força magnética me retinha, e que parecia rescender um misterioso eflúvio de amor, de pureza e de aventura...

Álvaro pára em sua narrativa, como que embevecido em tão suaves recordações.

— E ficaste nisso, Alvaro! — perguntava outro cavalheiro; — o teu romance está-nos interessando; vamos por diante, que estou aflito por ver a peripécia...

— A peripécia?.., oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo sei qual será. Esgotei enfim os estratagemas possíveis para ter entrada no santuário daquela deusa; mas foi tudo baldado. O acaso enfim veio em meu socorro, e serviu-me melhor do que toda a minha habilidade e diligência. Passeando eu uma tarde de carro no bairro de Santo Antônio, pelas margens do Beberibe, passeio que se tornara para mim uma devoção, avistei um homem e uma mulher navegando a todo pano em um pequeno bote.