Instantes depois o bote achou-se encalhado em um banco de areia. Apeei-me imediatamente, e tomando um escaler na praia, fui em socorro dos dois navegantes que em vão forcejavam por safar a pequena embarcação. Não podem fazer idéia da deliciosa surpresa que senti, ao reconhecer nas duas pessoas do bote a minha misteriosa da chácara e seu pai...
— Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de ser dramático; a história de seus amores com a tal fada misteriosa vai tomando visos de um poema fantástico.
— Entretanto, é a pura realidade. Como estavam molhados e enxovalhados, convidei-os a entrarem no meu carro. Aceitaram depois de muita relutância, e dirigimo-nos para a casa deles. É escusado contarvos o resto desde então, se bem que com algum acanhamento foi-me franqueado o umbral da gruta misteriosa.
— E pelo que vejo, — interrogou o doutor, — amas muito essa mulher?
— Se amo! adoro-a cada vez mais, e o que é mais, tenho razões para acreditar que ela... pelo menos não me olha com indiferença.
— Deus queira que não andes embaído por alguma Circe de bordel, por alguma dessas aventureiras, de que há tantas pelo mundo, e que, sabendo que és rico, arma laços ao teu dinheiro! Esse afastamento da sociedade, esse mistério, em que procuram tão cuidadosamente envolver a sua vida, não abonam muito em favor deles.
— Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair-se às pesquisas da polícia? — observou um cavalheiro.
— Talvez moedeiros falsos, — acrescentou outro.
— Tenho má-fé, — continuou o doutor — todas as vezes que vejo uma mulher bonita viajando em países estranhos em companhia de um homem, que de ordinário se diz pai ou irmão dela. O pai de tua fada, Álvaro, se é que é pai, é talvez algum cigano, ou cavalheiro de indústria, que especula com a formosura de sua filha.
— Santo Deus!... misericórdia! — exclamou Álvaro. — Se eu adivinhasse que veria a pessoa daquela criatura angélica apreciada com tanta atrocidade, ou antes tão impiamente profanada, quereria antes ser atacado de mudez, do que trazê-la à conversação. Creiam, que são demasiado injustos para com aquela pobre moça, meus amigos. Eu a julgaria antes uma princesa destronizada, se não soubesse que é um anjo do céu. Mas vocês em breve vão vê-la, e eu e ela estaremos vingados; pois estou certo que todos a uma voz a proclamarão uma divindade. Mas o pior é que desde já posso contar com um rival em cada um de vocês.
— Por minha parte, disse um dos cavalheiros, — pode ficar tranqüilo, pois sempre tive horror às moças misteriosas.
— E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito medo de fadas, — acrescentou o outro.
— E como é, perguntou o Dr. Geraldo, — que vivendo ela assim arredada da sociedade, pôde resolver-se a deixar a sua misteriosa solidão, para vir a este baile tão público e concorrido?...
— E quanto não me custou isso, meu amigo! — respondeu Álvaro. — Veio quase violentada. Há muito tempo que procuro convencê-la por todos os modos, que uma senhora jovem e formosa, como é ela, escondendo seus encantos na solidão, comete um crime, contrário às vistas do Criador, que formou a beleza para ser vista, admirada e adorada; pois sou o contrário desses amantes ciumentos e atrabiliários, que desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra. Argumentos, instâncias, súplicas, tudo foi perdido; pai e filha recusavam-se constantemente a aparecerem em público, alegando mil diversos pretextos. Vali-me por fim de um ardil; fiz-lhes acreditar que aquele modo de viver retraído e sem contato com a sociedade em um país, onde eram desconhecidos, já começava a dar que falar ao público e a atrair suspeitas sobre eles, e que até a polícia começava a olhá-los com desconfiança: mentiras, que não deixavam de ter sua plausibilidade...
— E tanta, — interrompeu o doutor. — que talvez não andem muito longe da verdade.
— Fiz-lhes ver, — continuou Álvaro, — que por infundadas e fúteis que fossem tais suspeitas, era necessário arredá-las de si, e para isso cumpria-lhes absolutamente freqüentar a sociedade. Este embuste produziu o desejado efeito.
— Tanto pior para eles, — retorquiu o doutor; — eis aí um indício bem mau, e que mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem eles inocentes, e bem pouco se importariam com as suspeitas do público ou da policia, e continuariam a viver como dantes.
— Tuas suspeitas não têm o menor fundamento, meu doutor. Eles têm poucos meios, e por isso evitam a sociedade, que realmente, impõe duros sacrifícios às pessoas desfavorecidas da fortuna, e eles... mas ei-los, que chegam... Vejam e convençam-se com seus próprios olhos.
Entrava nesse momento na ante-sala uma jovem e formosa dama pelo braço de um homem de idade madura e de respeitável presença.
— Boa noite, senhor Anselmo!... boa noite, D. Elvira!... felizmente ei-los aqui! — isto dizia Álvaro aos recém-chegados, separando-se de seus amigos, e apressurando-se para cumprimentar a aqueles com toda a amabilidade e cortesia. Depois oferecendo um braço a Elvira e outro ao senhor Anselmo, os vai conduzindo para as salas interiores, por onde já turbilhona a mais numerosa e brilhante sociedade. Os três interlocutores de Álvaro, bem como muitas outras pessoas, que por ali se achavam, puseram-se em ala para verem passar Elvira, cuja presença causava sensação e murmurinho, mesmo entre os que não estavam prevenidos.
— Com efeito!... é de uma beleza deslumbrante! Que porte de rainha!...
— Que olhos de andaluza!...
— Que magníficos cabelos!
— E o colo!... que colo!... não reparaste?...
— E como se traja com tão elegante simplicidade! — assim murmuravam entre si os três cavalheiros como impressionados por uma aparição celeste.
— E não reparaste, — acrescentou o Dr. Geraldo, — naquele feiticeiro sinalzinho, que tem na face direita?... Álvaro tem razão; a sua fada vai eclipsar todas as belezas do salão. E tem de mais a mais a vantagem da novidade, e esse prestígio do mistério, que a envolve. Estou ardendo de impaciência por lhe ser apresentado; desejo admirá-la mais de espaço. Neste tom continuaram a conversar, até que, passados alguns minutos, Álvaro, tendo cumprido a grata comissão de apresentador daquela nova pérola dos salões, estava de novo entre eles.
— Meus amigos, — disse-lhes ele com ar triunfante. — convido-os para o salão. Quero já apresentar-lhes D. Elvira para desvanecer de uma vez para sempre as injuriosas apreensões, que ainda há pouco nutriam a respeito do ente o mais belo e mais puro, que existe debaixo do Sol, se bem que estou certo que só com a simples vista ficaram penetrados de assombro até a medula dos ossos.
Os quatro cavalheiros se retiraram e desapareceram no meio do turbilhão das salas interiores. Foram, porém, imediatamente substituídos por um grupo de lindas e elegantes moças, que cintilantes de sedas e pedrarias como um bando de aves-do-paraíso, passeavam conversando. O assunto da palestra era também D. Elvira; mas o diapasão era totalmente diverso, e em nada se harmonizava com o da conversação dos rapazes. Nenhum mal nos fará escutá-las por alguns instantes.
— Você não saberá dizer-nos, D. Adelaide, quem é aquela moça, que ainda há pouco entrou na sala pelo braço do senhor Álvaro?
— Não, D. Laura; é a primeira vez que a vejo, parece-me que não é desta terra.
— Decerto; que ar espantado tem ela!... parece uma matuta, que nunca pisou em um salão de baile; não acha, D. Rosalina?
— Sem dúvida!.., e você não reparou na toilette dela?... meu Deus!... que pobreza! a minha mucama tem melhor gosto para se trajar. Aqui a D. Emília é que talvez saiba quem ela é.