— Eu? por quê? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Álvaro já me tinha dado notícias dela, dizendo que era um assombro de beleza. Não vejo nada disso; é bonita, mas não tanto, que assombre.
— Aquele senhor Álvaro sempre é um excêntrico, um esquisito; tudo quanto é novidade o seduz. E onde iria ele escavar aquela pérola, que tanto o traz embasbacado?...
— Veio de arribação lá dos mares do Sul, minha amiga, e a julgar pelas aparências não é de todo má.
— Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais suportável.
— Pelo contrário, D. Laura; aquele sinal é que ainda lhe dá certa graça particular...
— Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava que você também tem na face um sinalzinho semelhante; esse deveras fica-te muito bem, e dá-te, muita graça; mas o dela, se bem reparei, é grande demais; não parece uma mosca, mas sim um besouro, que lhe pousou na face.
— A dizer-te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o salão; é preciso vê-la mais de perto, estudá-la com mais vagar para podermos dar com segurança a nossa opinião.
E, dito isto, lá se foram elas com os braços enlaçados, formando como longa grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando perder-se entre a multidão.
11
Álvaro era um desses privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna parece terem querido despejar à porfia todo o cofre de seus favores. Filho único de uma distinta e opulenta família, na idade de vinte e cinco anos, era órfão de pai e mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dois mil contos.
Era de estatura regular, esbelto, bem feito e belo, mais pela nobre e simpática expressão da fisionomia do que pelos traços físicos, que entretanto não eram irregulares. Posto que não tivesse o espírito muito cultivado, era dotado de entendimento lúcido e robusto, próprio a elevar-se à esfera das mais transcendentes concepções. Tendo concluído os preparatórios, como era filósofo, que pesava gravemente as coisas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter uma profissão qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum prazer nos estudos acadêmicos; mas quando teve de embrenhar-se no intrincado labirinto dessa árida e enfadonha casuística do direito positivo, seu espírito eminentemente sintético recuou enfastiado, e não teve ânimo de prosseguir na senda encetada. Alma original, cheia de grandes e generosas aspirações, aprazia-se mais na indagação das altas questões políticas e sociais, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião, só tinham por base erros e preconceitos os mais absurdos.
Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer que era liberal, republicano e quase socialista.
Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não pequena porção da herança de seus pais, tratou logo de emancipá-los todos. Como porém Álvaro tinha um espírito nimiamente filantrópico, conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro. A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a subsistência e podiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam indenizar a Álvaro do sacrifício, que fizera com a sua emancipação. Original e excêntrico como um rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quaker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados. Entretanto, Álvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher que lhe devia tocar o coração, a encarnação do tipo ideal, que lhe sorria nos sonhos vagos de sua poética imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados, Álvaro por certo devia ser objeto de grande preocupação no mundo elegante, e talvez o almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais de uma ilustre e formosa donzela. Ele, porém, igualmente cortês e amável para com todas, por nenhuma delas ainda havia dado o mínimo sinal de predileção.
Pode-se fazer idéia do desencanto, do assombro, da terrível decepção que reinou nos círculos das belas pernambucanas ao verem o vivo interesse e solicitude de que Álvaro rodeava uma obscura e pobre moça; a deferência com que a tratava, e os entusiásticos elogios que sem rebuço lhe prodigalizava. Juno e Palas não ficaram tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da formosura. Já antes daquele sarau, Álvaro em alguns círculos de senhoras havia falado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa eloquência apaixonada, que a todas surpreendeu e inquietou. As moças ardiam por ver aquele protótipo de beleza, e já de antemão choviam sobre a desconhecida e o seu campeão mil chascos e malignos apodos. Quando, porém, a viram, apesar dos contrafeitos e desdenhosos sornsos que apenas lhes roçavam a flor dos lábios, sentiram uma desagradável impressão pungir-lhes no íntimo do coração. Peço perdão às belas, de minha rude franqueza; a vaidade é, com bem raras exceções, companheira inseparável da beleza e onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo. A beleza da desconhecida era incontestável; sua modéstia e timidez em nada prejudicavam a singela e nativa elegância de que era dotada; o traje simples e mesmo pobre em relação ao luxo suntuoso, que a rodeava assentava-lhe maravilhosamente, e realçava-lhe ainda mais os encantos naturais. O efeito deslumbrante, que Elvira produziu logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que Álvaro procurava fazer sobressaltar os sedutores atrativos de Elvira, como de propósito para eclipsar as outras belezas do salão, eram de sobejo para irritar-lhes a vaidade e o amor-próprio. Uma e outra deviam ser naquela noite o alvo de mil olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados epigramas.
Álvaro nem dava fé da mal disfarçada hostilidade com que ele e a sua protegida, — podemos dar-lhe esse nome, — eram acolhidos naquela reunião; mas a tímida e modesta Elvira, que em parte alguma encontrava lhaneza e cordialidade, achava-se mal naquela atmosfera de fingida amabilidade e cortesania, e em cada olhar via um escárnio desdenhoso, em cada sorriso um sarcasmo.
Já sabemos quem era Álvaro; agora travemos conhecimento com o seu amigo, o Dr. Geraldo.
Era um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado altamente conceituado no foro do Recife. Entre as relações de Álvaro era a que cultivava com mais afeto e intimidade; uma inteligência de bom quilate, firme e esclarecida, um caráter sincero, franco e cheio de nobreza, davam-lhe direito a essa predileção da parte de Álvaro. Seu espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às instituições e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as idéias excêntricas e reformistas de seu amigo; mas esse antagonismo, longe de perturbar ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre eles reinava, servia antes para alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia que deve reinar nas relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que uma quer, a outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem, enjoadas de tanto se dizerem — amém, — ver-se-ão forçadas a recolherem-se ao silêncio e a dormitarem uma em face da outra; plácida, cômoda e sonolenta amizade!... De mais, a contrariedade de tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras. É assim que muitas vezes o positivismo e o senso prático do Dr. Geraldo serviam de corretivo às utopias e exaltações de Álvaro, e vice-versa.