Da boca do próprio Álvaro já ouvimos por que acaso veio ele conhecer D. Elvira, e como conseguiu levá-la ao sarau, a que ainda continuamos a assistir.
— Meu pai, — dizia uma jovem senhora a um homem respeitável, em cujo braço se arrimava, entrando na ante-sala, onde ainda nos conservamos de observação. — Meu pai, fiquemos por aqui um pouco nesta sala, enquanto está deserta. Ah! meu Deus! — continuou ela com voz abafada, depois de se terem sentado junto um do outro; — que vim eu aqui fazer, eu pobre escrava, no meio dos saraus dos ricos e dos fidalgos!... este luxo, estas luzes, estas homenagens, que me rodeiam, me perturbam os sentidos e causam-me vertigem. É um crime que cometo, envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade; é uma traição, meu pai; eu o conheço, e sinto remorsos... Se estas nobres senhoras adivinhassem que ao lado delas diverte-se e dança uma miserável escrava fugida a seus senhores!... Escrava! — exclamou levantando-se — escrava!... afigura-se-me que todos estão lendo, gravada em letras negras em minha fronte, esta sinistra palavra!... fujamos daqui, meu pai, fujamos! esta sociedade parece estar escarnecendo de mim; este ar me sufoca... fujamos.
Falando assim a moça, pálida e ofegante, lançava a cada frase olhares inquietos em roda de si, e empuxava o braço de seu pai, repetindo sempre com ansiosa sofreguidão:
— Vamo-nos, meu pai; fujamos daqui.
— Sossega teu coração, minha filha, — respondeu o velho procurando acalmá-la. — Aqui ninguém absolutamente pode suspeitar quem tu és. Como poderão desconfiar que és uma escrava, se de todas essas lindas e nobres senhoras nem pela formosura, nem pela graça e prendas do espirito nenhuma pode levar-te a palma?
— Tanto pior, meu pai; sou alvo de todas as atenções, e esses olhares curiosos, que de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me a cada instante estremecer; desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus
pés, e me sumisse em seu seio.
— Deixa-te dessas idéias; esse teu medo e acanhamento é que poderiam nos pôr a perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de receio. Ostenta com desembaraço todos os seus encantos e habilidades, dança, canta, conversa, mostra-te alegre e satisfeita, que longe de te suporem uma escrava, são capazes de pensar que és uma princesa. Toma ânimo, minha filha, ao menos por hoje; esta também, assim como é a primeira, será a derradeira vez que passaremos por este constrangimento; não nos é possível ficar por mais tempo nesta terra, onde começamos a despertar suspeitas.
— É verdade, meu pai!... que fatalidade!... — respondeu a moça com uma triste oscilação de cabeça. — Assim pois estamos condenados a vagar de pais em país, sequestrados da sociedade, vivendo no mistério, e estremecendo a todo instante, como se o céu nos tivesse marcado com um ferrete de maldição!... ah! esta partida há de me doer bem no coração!... não sei que encanto me prende a este lugar. Entretanto, terei de dizer adeus eterno a... esta terra, onde gozei alguns dias de prazer e tranqüilidade! Ah! meu Deus!... quem sabe se não teria sido melhor morrer entre os tormentos da escravidão!...
Neste momento entrava Álvaro na ante-sala percorrendo-a com os olhos, como quem procurava alguém.
— Onde se sumiriam? — vinha ele murmurando; — teriam tido a triste lembrança de se irem embora?... oh! não; felizmente ei-los ali! — exclamou alegremente, dando com os olhos nos dois personagens que acabamos de ouvir conversar. — D. Elvira, V. Ex.ª. é modesta demais; vem esconder-se neste recanto, quando devia estar brilhando no salão, onde todos suspiram pela sua presença. Deixe isso para as tímidas e fanadas violetas; à rosa compete alardear em plena luz todos os seus encantos.
— Desculpe-me, — murmurou Isaura — uma pobre moça criada como eu na solidão da roça, e que não está acostumada a tão esplêndidas reuniões, sente-se abafada e constrangida...
— Oh! não... há de acostumar-se, eu espero. As luzes, o esplendor, as harmonias, os perfumes, constituem a atmosfera em que deve brilhar a beleza, que Deus criou para ser vista e admirada. Vim buscá-la a pedido de alguns cavalheiros, que já são admiradores de V. Ex.ª. Para interromper a monotonia das valsas e quadrilhas, costumam aqui as senhoras encantar-nos os ouvidos com alguma canção, ária, modinha, ou seja o que for. Algumas pessoas a quem eu disse, — perdoe-me a indiscrição, filha do entusiasmo — que V. Ex.ª possui a mais linda voz, e canta com maestria, mostram o mais vivo desejo de ouvi-la.
— Eu, senhor Álvaro!... eu cantar diante de uma tão luzida reunião!... por favor, queira dispensar-me dessa nova prova. É em seu próprio interesse que lhe digo; canto mal, sou muito acanhada, e estou certa que irei solenemente desmenti-lo. Poupe-nos a nós ambos essa vergonha.
— São desculpas, que não posso aceitar, porque já a ouvi cantar, e creia-me, D. Elvira, se eu não tivesse a certeza de que a senhora canta admiravelmente, não seria capaz de expô-la a um fiasco. Quem canta como V. Ex.ª não deve acanhar-se, e eu por minha parte peço-lhe encarecidamente que não cante outra coisa, senão aquela maviosa canção da escrava, que outro dia a surpreendi cantando, e afianço a V. Ex.ª que arrebatará os ouvintes.
— Por que razão não pode ser outra? essa desperta-me recordações tão tristes...
— E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos lábios de V. Ex.ª.
— Ai! triste de mim! — suspirou dentro da alma D. Elvira: — aqueles mesmos que mais me amam, tomam-se, sem o saber, os meus algozes!...
Elvira bem quisera escusar-se a todo transe; cantar naquela ocasião era para ela o mais penoso dos sacrifícios. Mas não lhe era mais possível relutar, e lembrando-se do judicioso conselho de seu pai, não quis mais ver-se rogada, e aceitando o braço que Álvaro lhe oferecia, foi por ele conduzida ao piano, onde sentou-se com a graça e elegância de quem se acha completamente familiarizada com o instrumento.
Uma multidão de cabeças curiosas, e de corações palpitando na mais ansiosa expectação, se apinharam em volta do piano; os cavalheiros estavam ansiosos por saberem se a voz daquela mulher correspondia à sua extraordinária beleza; se a fada seria também uma sereia; as moças esperavam, que ao menos naquele terreno, teriam o prazer de ver derrotada a sua formidável êmula, e já contavam compará-la com o pavão da fábula, queixando-se a Juno que, o tendo formado a mais bela das aves, não lhe dera outra voz mais que um guincho áspero e desagradável.
A conjuntura era delicada e solene; a moça achava-se na difícil situação de uma prima-dona, que, precedida de uma grande reputação, faz a sua estréia perante um público exigente e ilustrado. Em tomo dela fazia-se profundo silêncio; as respirações estavam como que suspensas, ao passo que parecia ouvir-se o palpitar de todos os corações no ofego da expectação. Álvaro, apesar de conhecer já a excelência da voz de Elvira e sua maestria no canto, não deixava de mostrar-se inquieto e comovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de cantar bem ou mal; desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais desengraçada e a mais tola daquela reunião, contanto que a deixassem a um canto esquecida e sossegada. Dir-se-ia que estava debaixo do império de algum terrível pressentimento. Mas Elvira amava a Álvaro, e grata ao delicado empenho, com que este, cheio de solicitude e entusiasmo, se esforçava por apresentá-la como um protótipo de beleza e de talento aos olhos daquela brilhante sociedade, para satisfazê-lo, e não desmentir a lisonjeira opinião, que propalara a respeito dela, desejava cantar o melhor que lhe fosse possível. Era ao triunfo de Álvaro que aspirava mais do que ao seu próprio.