— Pois que tem isso?.., continua a cantar... tens a voz tão bonita!... mas eu antes quisera que cantasses outra coisa; por que é que você gosta tanto dessa cantiga tão triste, que você aprendeu não sei onde?...
— Gosto dela, porque acho-a bonita e porque... ah! não devo falar...
— Fala, Isaura. Já não te disse que nada me deves esconder, e nada recear de mim?...
— Porque me faz lembrar de minha mãe, que eu não conheci, coitada!... Mas se a senhora não gosta dessa cantiga, não a cantarei mais.
— Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar que és maltratada, que és uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto passas aqui uma vida que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teus senhores. Deram-te uma educação, como não tiveram muitas ricas e ilustres damas que eu conheço. És formosa, e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano. Bem sabes quanto minha boa sogra antes de expirar te recomendava a mim e a meu marido. Hei de respeitar sempre as recomendações daquela santa mulher, e tu bem vês, sou mais tua amiga do que tua senhora. Oh! não; não cabe em tua boca essa cantiga lastimosa, que tanto gostas de cantar. — Não quero, — continuou em tom de branda repreensão, — não quero que a cantes mais, ouviste, Isaura?... se não, fecho-te o meu piano.
— Mas, senhora, apesar de tudo isso, que sou eu mais do que uma simples escrava? Essa educação, que me deram, e essa beleza, que tanto me gabam, de que me servem?... são trastes de luxo colocados na senzala do africano. A senzala nem por isso deixa de ser o que é: uma senzala.
— Queixas-te da tua sorte, Isaura?...
— Eu não, senhora; não tenho motivo... o que quero dizer com isto é que, apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem, sei conhecer o meu lugar.
— Anda lá; já sei o que te amofina; a tua cantiga bem o diz. Bonita como és, não podes deixar de ter algum namorado.
— Eu, senhora!... por quem é, não pense nisso.
— Tu mesma; pois que tem isso?... não te vexes; pois é alguma coisa do outro mundo? Vamos já, confessa; tens um amante, e é por isso que lamentas não teres nascido livre para poder amar aquele que te agradou, e a quem caíste em graça, não é assim?...
— Perdoe-me, sinhá Malvina; — replicou a escrava com um cândido sorriso. — Está muito enganada; estou tão longe de pensar nisso!
— Qual longe!... não me enganas, minha rapariguinha!... tu amas, e és mui linda e bem prendada para te inclinares a um escravo; só se fosse um escravo, como tu és, o que duvido que haja no mundo. Uma menina como tu, bem pode conquistar o amor de algum guapo mocetão, e eis aí a causa da choradeira de tua canção. Mas não te aflijas, minha Isaura; eu te protesto que amanhã mesmo terás a tua liberdade; deixa Leôncio chegar; é uma vergonha que uma rapariga como tu se veja ainda na condição de escrava.
— Deixe-se disso, senhora; eu não penso em amores e muito menos em liberdade; às vezes fico triste à toa, sem motivo nenhum...
— Não importa. Sou eu quem quero que sejas livre, e hás de sê-lo.
Neste ponto a conversação foi cortada por um tropel de cavaleiros, que chegavam e apeavam-se á porta da fazenda.
Malvina e Isaura correram à janela a ver quem eram.
2
Os cavaleiros, que acabavam de apear-se, eram dois belos e ele— gantes mancebos, que chegavam da vila de Campos. Do modo familiar, por que foram entrando, logo se depreendia que era gente de casa.
De feito um era Leôncio, marido de Malvina; e outro Henrique, irmão da mesma.
Antes de irmos adiante forçoso nos é travar conhecimento mais íntimo com os dois jovens cavaleiros.
Leôncio era filho único do rico e magnífico comendador Almeida, proprietário da bela e suntuosa fazenda em que nos achamos. O comendador, já bastante idoso e cheio de enfermidades depois do casamento de seu filho, que tivera lugar um ano antes da época em que começa esta história, havia-lhe abandonado a administração e usufruto da fazenda, e vivia na corte, onde procurava alivio ou distração aos achaques que o atormentavam.
Leôncio achara desde a infância nas larguezas e facilidades de seus pais amplos meios de corromper o coração e extraviar a inteligência. Mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou de colégio em colégio, e passou como gato por brasas por cima de todos os preparatórios, cujos exames todavia sempre salvara à sombra do patronato. Os mestres não se atreviam a dar ao nobre e munífico comendador o desgosto de ver seu filho reprovado. Matriculado na escola de medicina logo no primeiro ano enjoou-se daquela disciplina, e como seus pais não sabiam contrariá-lo, foi-se para Olinda a fim de freqüentar o curso jurídico. Ali depois de ter dissipado não pequena porção da fortuna paterna na satisfação de todos os seus vícios e loucas fantasias, tomou tédio também aos estudos jurídicos, e ficou entendendo que só na Europa poderia desenvolver dignamente a sua inteligência, e saciar a sua sede de saber, em puros e abundantes mananciais. Assim escreveu ao pai, que deu-lhe crédito e o enviou a Paris, donde esperava vê-lo voltar feito um novo Humboldt. Instalado naquele vasto pandemônio do luxo e dos prazeres, Leóncio raras vezes, e só por desfastio, ia ouvir as eloqüentes preleções dos exímios professores da época, e nem tampouco era visto nos museus, institutos e bibliotecas. Em compensação era assíduo frequentador do Jardim Mabile, assim como de todos os cafés e teatros mais em voga, e tomara-se um dos mais afamados e elegantes leões dos bulevares. No fim de alguns anos, ora de residência em Paris, ora de giros recreativos pelas águas e pelas principais capitais da Europa, tinha ele tão copiosa e desapiedadamente sangrado a bolsa paterna, que o comendador a despeito de toda a sua condescendência e ternura para com seu único e querido filho, viu-se na necessidade de revocá-lo à sombra dos pátrios lares a fim de evitar uma completa ruína. Mas, mesmo assim, para não magoá-lo colhendo-lhe súbita e rudemente as rédeas na carreira dos desvarios e dissipações, assentou de atraí-lo suavemente acenando-lhe com a perspectiva de um rico e vantajosíssimo casamento.
Leôncio pegou na isca e voltou à pátria um perfeito dândi, gentil e elegante como ninguém, trazendo de suas viagens, em vez de conhecimentos e experiência, enorme dose de fatuidade e petulância e um tão perfeito traquejo da alta sociedade, que o tomaríeis por um príncipe. Mas o pior era que, se trazia o cérebro vazio, voltava com a alma corrompida e o coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem. Alguns bons e generosos instintos, de que o dotara a natureza, haviam-se apagado em seu coração ao roçar de péssimas doutrinas confirmadas por exemplos ainda piores.
De volta da Europa, Leóncio contava vinte e cinco anos. O pai advertiu-lhe com palavras insinuantes e jeitosas, que já era tempo de empregar-se em alguma coisa, de abraçar alguma carreira; que já se tinha aproveitado da bolsa paterna mais do que era preciso para sua educação, e que era mister ir aprendendo se não a aumentar, ao menos a conservar uma fortuna, à testa da qual teria de achar-se mais tarde ou mais cedo. Depois de muita hesitação, Leôncio optou enfim pela carreira do comércio que lhe pareceu ser a mais independente e segura de todas; mas as suas idéias largas e audaciosas a este respeito aterraram o bom do comendador. O comércio de importação e exportação de gêneros, mesmo em larga escala, o próprio tráfego de africanos, lhe pareciam especulações degradantes e impróprias de sua alta posição e esmerada educação. O negócio de balcão e a retalho, esse inspirava-lhe asco e compaixão. Só lhe convinham as altas especulações cambiais, as operações bancárias e transações em que jogasse com avultados capitais. Só assim poderia duplicar em pouco tempo a fortuna patema. Com o que tinha observado na Bolsa de Paris e em outras praças européias, presumia-se com habilitação bastante para dirigir as operações do mais importante estabelecimento bancário, ou as mais grandiosas empresas industriais.