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Medindo o abismo que a separava de Álvaro, bem sabia que de nenhuma esperança podia alimentar-se aquela paixão funesta, que deveria ficar para sempre sepultada no íntimo do coração, como um cancro a devorá-lo eternamente.

No seu cálice de amarguras, já quase a transbordar, tinha de receber da mão do destino mais aquele travo cruel, que lhe devia queimar os lábios e envenenar-lhe a existência.

Já bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito de sua verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava-se consigo mesma de impor às poucas pessoas que com ela tratavam de perto, um respeito e consideração a que nenhum direito podia ter. Mas considerando que de tal disfarce nenhum grande mal podia resultar à sociedade, conformava-se com sua sorte. Deveria, porém, ela, ou poderia sem inconveniente manter o seu amante na mesma ilusão? Com seu silêncio, conservando-o na ignorância de sua condição de escrava, deveria deixar alimentar-se, crescer profunda e enérgica paixão, que o moço por ela concebera?... não seria isto um vil embuste, uma indignidade, uma traição infame? não teria ele o direito, ao saber da verdade, de acabrunhá-la de amargas exprobrações, de desprezá-la, de calcá-la aos pés, de tratá-la enfim como escrava abjeta e vil, que ficaria sendo?

— Oh! isto para mim seria mais horrível que mil mortes! — exclamava ela no meio do angustioso embate de idéias que se lhe agitavam no espírito. — Não, não devo iludi-lo; isto seria uma infâmia... vou-lhe descobrir tudo; é esse o meu dever, e hei de cumpri-lo. Ficará sabendo que não pode, que não deve amar-me; porém ao menos não ficará com o direito de desprezar-me.. uma escrava, que procede com lisura e lealdade, pode ao menos ser estimada. Não; não devo enganá-lo; hei de revelar-lhe tudo.

Esta era a resolução que lhe inspiravam seu natural pundonor e lealdade, e os ditames de uma consciência reta e delicada, mas quando chegava o momento de pô-la em prática fraqueava-lhe o coração. e Isaura ia diferindo de dia para dia a execução de seu propósito.

Falecia-lhe de todo a coragem para quebrar por suas próprias mãos a doce quimera, que tão deliciosamente a embalava, e em que às vezes conseguia esquecer por longo tempo sua mísera condição, para lembrar-se somente que amava e era amada.

— Deixemos durar mais um dia — refletia consigo. — esta ilusória, mas inefável ventura. Sou uma condenada, que arrancam da masmorra para subir ao palco e fazer por momentos o papel de rainha feliz e poderosa; quando descer, serei de novo sepultada em minha masmorra para nunca mais sair. Prolonguemos estes instantes; náo será lícito deixar passar ao menos em sonhos uma hora de felicidade sobre a fronte do infeliz condenado?... sempre será tempo de quebrar esta frágil cadeia de ouro, que me prende ao céu, e baquear de novo no inferno de meus sofrimentos.

Nesta indecisão, nesta luta interna, em que sempre a voz da paixão abafava os ditames da razão e da consciência, passaram-se alguns dias até àquele, em que Alvaro os induziu por meios quase violentos a aceitarem convite para um baile. Desde então Isaura entendeu que seria uma deslealdade, uma infâmia inqualificável, conservar por mais tempo o seu amante na ilusão a respeito de sua condição, e que não havia mais meio de prolongar, sem desdouro para eles, tão falsa e precária situação.

Era muito abusar da ignorância do nobre e generoso mancebo! Uma escrava fugida apresentar-se em um baile, e apavonar-se em seu braço à face da mais brilhante e distinta classe de uma importante capital!... era pagar com a mais feia ingratidão e a mais degradante deslealdade os serviços, que com tanta delicadeza e amabilidade lhe havia prestado. Isto repugnava absolutamente aos escrúpulos da melindrosa consciência de Isaura. É verdade que Miguel, aterrado pelas considerações que Álvaro lhe fizera, viu-se forçado a anuir ao seu gracioso convite; Isaura porém guardara absoluto silêncio, o que ambos tomaram por um sinal de aquiescência.

Enganavam-se. Isaura recolhida ao silêncio não fazia mais do que tentar esforços supremos para sacudir o fardo daquele disfarce, que tanto lhe pesava sobre a consciência, rasgando resolutamente o véu que encobria aos olhos do amante sua verdadeira condição. Por mais, porém, que invocasse toda a sua energia e resolução, no momento decisivo a coragem a abandonava. Já a palavra lhe pairava pelos lábios entreabertos, já tinha o passo formado para ir prostrar-se aos pés de Álvaro, mas encontrando pousado sobre ela o olhar meigo e apaixonado do mancebo, ficava como que fascinada; a palavra não ousava romper os lábios paralisados e refluía ao coração, e os pés recusavam-se ao movimento como se estivessem pregados no chão. Isaura estava como o desgraçado a quem circunstâncias fatais arrastam ao suicídio, mas que ao chegar à borda do precipício medonho em que deseja arrojar-se, recua espavorido.

— Fraca e covarde criatura que eu sou! — pensou ela por fim esmorecida: — que miséria! nem tenho coragem para cumprir um dever! não importa; para tudo há remédio; cumpre que ele ouça da boca de meu pai, o que eu não tenho ânimo de dizer-lhe.

Esta idéia luziu-lhe no espírito como uma tábua salvadora; agarrou-se a ela com sofreguidão, e antes que de novo lhe fraqueasse o ânimo, tratou de pô-la em execução.

— Meu pai, — disse ela resolutamente apenas Álvaro transpôs o portão do pequeno jardim, — declaro-lhe que não vou a esse baile; não quero, nem devo por forma nenhuma lá me apresentar.

— Não vais?! — exclamou Miguel atônito. — E por que não disseste isto há mais tempo, quando o senhor Álvaro ainda aqui se achava? agora que já demos nossa palavra...

— Para tudo há remédio, meu pai, — atalhou a filha com febril vivacidade — e para este caso ele é bem simples. Vá meu pai depressa à casa desse moço, e diga-lhe o que eu não tive ânimo de dizer-lhe; declare-lhe quem eu sou, e está tudo acabado.

Dizendo isto, Isaura estava pálida, falava com precipitação, os lábios descarados lhe tremiam, e as palavras, proferidas com voz convulsa e estridente, parecia que lhe eram arrancadas a custo do coração. Era o resultado do extremo esforço que fazia, para levar a efeito tão penível resolução. O pai olhava para ela com assombro e consternação.

— Que estás a dizer, minha filha! — replicou-lhe ele — estás tão pálida e alterada!.. parece-me que tens febre... sofres alguma coisa?

— Nada sofro, meu pai; não se inquiete pela minha saúde. O que eu estou lhe dizendo é que é absolutamente necessário que meu pai vá procurar esse moço e confessar-lhe tudo...

— Isso nunca!... estás louca, menina?... queres que eu te veja encerrada em uma cadeia, conduzida em ferros para a tua província, entregue a teu senhor, e por fim ver-te morrer entre tormentos nas garras daquele monstro! oh! Isaura, por quem és, não me fales mais nisso, Enquanto o sangue me girar nestas veias, enquanto me restar o mais pequenino recurso, hei de lançar mão dele para te salvar...

— Salvar-me por meio de uma indignidade, de uma infâmia, meu pai!... retorquiu a moça com exaltação. — Como posso eu, sem cometer a mais vil deslealdade, aparecer apresentada por ele como uma senhora livre em uma sala de baile?... Quando esse senhor e tantas outras ilustres pessoas souberem que ombreou com elas, e a par delas dançou uma miserável escrava fugida...

— Cala-te, menina! — interrompeu o velho, incomodado com a exaltação da filha. — Não fales assim tão alto... tranqüiliza-te; eles nunca saberão de nada. O mais breve que puder ser deixaremos esta terra; amanhã mesmo, se for possível. Embarcaremos em qualquer paquete, e iremos para bem longe, para os Estados Unidos, por exemplo. Lá, segundo me consta, poderemos ficar fora do alcance de qualquer perseguição. Eu com o meu trabalho, e tu com as tuas prendas e habilitações, podemos viver sem sofrer necessidades em qualquer canto do mundo.

— Ah! meu pai! essa idéia de irmos para tão longe, sem esperança de um dia podermos voltar, me oprime o coração.