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— Que remédio, minha filha!.., já agora, ainda que tenhamos de ir parar ao fim do mundo, nos é forçoso fugir às garras do monstro.

— Mas esse moço, que tanto se interessa por nós, o senhor Álvaro, nobre e generoso como é, sabendo da minha verdadeira condição, e das terríveis circunstâncias que nos obrigam a andar assim fugitivos e disfarçados pelo mundo, talvez queira e possa nos amparar e valer contra as perseguições...

— E quem nos afiança isso?... o mais certo é ele entregar-te ao desprezo, logo que saiba que não passas de uma escrava fugida, se, despeitado com o logro que levou, não for o primeiro a denunciar-te à polícia. No transe em que nos achamos, é de absoluta necessidade enganar a ele e a todos; se revelarmos a quem quer que seja o segredo de nossa posição, estamos perdidos. Toma coragem, e vamos ao baile, minha filha; é um sacrifício cruel, mas passageiro, a que devemos nos sujeitar a bem de nossa segurança. Em breve estaremos longe, e se algum dia souberem quem tu eras, que nos importa? nunca mais nos verão o rosto, nem ouvirão nossos nomes. Tens a consciência escrupulosa em demasia. Se ignoram quem tu és, a tua companhia em nada os pode infamar. Com isso não fazes mal a ninguém; é uma medida de salvação, que todos te perdoariam.

— Meu pai parece que tem razão; mas não sei por que, repugna-me absolutamente ao coração dar esse passo.

— Mas é preciso dá-lo, minha filha, se não queres para nós ambos a desgraça e a morte. Se não formos a esse baile, e desaparecermos de um dia para outro, como nos é forçoso, então as suspeitas que começamos a despertar tomarão muito maior vulto, e a policia pôr-se-á à nossa pista, e nos perseguirá por toda parte. É um sacrifício na verdade, mas não será ele muito mais suave do que as perseguições da polícia, a prisão, as torturas e a morte, que é o que podes esperar em casa de teu senhor?...

Isaura não respondeu; seu espírito agitava-se entre as mais pungentes e amargas reflexões.

As palavras de seu pai a tinham abismado em glacial e profundo desalento. Aturdida por tantos golpes, sua alma debatia-se em um mar de dúvidas e perplexidades, como frágil barca em meio de um oceano irritado, sacudida aos boléus por vagalhões desencontrados.

O grito de sua consciência escrupulosa e delicada, a lisura e sinceridade de seu coração, que não podia acomodar-se com o embuste e a mentira, e uma espécie de vago pressentimento que lhe pesava sobre o espírito, a desviavam daquele baile, e por momentos pareciam fixar definitivamente a sua resolução; e firme neste propósito dizia consigo mesma: — não, não irei.

Por outro lado as considerações de seu pai, que pareciam tão razoáveis, bem como o desejo de ver Álvaro ainda uma vez, de gozar por algumas horas a sua presença, faziam-lhe de novo flutuar o espírito no mar das irresoluções. A lembrança de que em breve, talvez no dia seguinte, tinha de deixar aquela terra e separar-se de Álvaro, sem esperança alguma de jamais tornar a vê-lo, sem poder dizer-lhe um adeus, sem que ele pudesse saber quem ela era, nem para onde ia, dilacerava-lhe o coração. Partir sem ter um ente a quem apertar nos braços na hora da despedida, nem ter um seio onde verter as lágrimas da mais pungente saudade; partir para levar uma vida errante e fugitiva, sem esperança nem consolação alguma, através de mil trabalhos e perigos, para terminá-la talvez entre os tormentos da mais atroz escravidão, oh!... isto era pavoroso! — e, entretanto, era esse o único futuro que a pobre Isaura tinha diante dos olhos. Mas não; tinha ainda diante de si uma noite inteira de prazer e de ventura, uma noite esplêndida de baile e regozijo de seu amante, respirando o mesmo ar, inebriando-se de sua voz, bebendo o seu hálito, recolhendo dentro d’alma seus olhares apaixonados, sentindo na sua a pressão daquela mão adorada, contando as pulsações daquele coração, que só por ela palpitava. Oh! uma noite assim valia bem uma eternidade, viessem depois embora as angústias e perigos, a escravidão e a morte!

Cândida e modesta como era, nem por isso Isaura deixava de ter consciência do quanto valia. Vendo-se o objeto do amor de um jovem de espírito elevado, e dotado de tão nobres e brilhantes qualidades como Álvaro, ainda mais se confirmou na idéia que de si mesma fazia.

Com sua natural perspicácia e penetração, bem depressa convenceu-se de que o afeto que o mancebo lhe consagrava não era simples e superficial homenagem rendida a seus encantos e talentos, nem tampouco passageiro capricho de mocidade, mas verdadeira paixão, sincera, enérgica e profunda. Era isso para ela motivo de um orgulho íntimo, que a elevava a seus próprios olhos, e por momentos a fazia esquecer-se que era uma escrava.

— Estou convencida de que sou digna do amor de Álvaro, senão, ele não me amaria; e se sou digna de seu amor, por que não o serei de me apresentar no seio da mais brilhante sociedade? A perversidade dos homens pode acaso destruir o que há de bom e de belo na feitura do Criador? Assim refletia Isaura, e exaltada com estas idéias e com a sedutora perspectiva de algumas horas de inefável ventura em companhia do amante exclamava dentro d’alma: — Hei de ir, hei de ir ao baile!

Enquanto Isaura, silenciosa e com a face na mão, se embebia em suas cismas, procurando firmar-se em uma resolução, o pai, não menos inquieto e preocupado, passeava distraído entre os canteiros do jardim, aguardando com ansiedade uma resposta definitiva de sua filha.

— Irei, meu pai, irei ao baile, — disse ela por fim levantando-se, mas vou preparar-me para ele como a vítima que tem de ser conduzida ao sacrifício entre cânticos e flores. Tenho um cruel pressentimento, que me acabrunha...

— Pressentimento de quê, Isaura?...

— Não sei, meu pai; de alguma desgraça.

— Pois quanto a mim, Isaura, o coração como que está-me adivinhando que de ir a esse baile resultará a nossa salvação.

13

Não pense o leitor que já se acha terminado o baile a que estávamos assistindo. A pequena digressão que por fora dele fizemos no capitulo antecedente, nos pareceu necessária para explicar por que conjunto de circunstãncias fatais a nossa heroína, sendo uma escrava, foi impelida a tomar a audaciosa resolução de apresentar-se em um esplêndido e aristocrático sarau, — fraqueza de coração, ou timidez de caráter, que pode ser desculpada, mas não plenamente justificada em uma pessoa de consciência tão delicada e de tão esclarecido entendimento.

O baile continua, mas já não tão animado e festivo como ao princípio. Os aplausos frenéticos, a admiração geral, de que Isaura se havia tornado objeto da parte dos cavalheiros, tinham produzido um completo resfriamento entre as mais belas e espirituosas damas da reunião. Arrufadas com seus cavalheiros prediletos, em razão das entusiásticas homenagens, que francamente iam render aos pés daquela que implicitamente estavam proclamando a rainha do salão, já nem ao menos queriam dançar, e em vez de tisos folgazões, e de uma conversação franca e jovial, só se ouviam pelos cantos entre diversos grupos expansões misteriosamente sussurradas, e cochichos segredados entre amarelas e sarcásticas risotas.

Propagava-se entre as moças como que um sussurro geral de descontentamento. Era como esses rumores surdos e profundos, que restrugem ao longe pelo espaço, precedendo uma grande tempestade. Dir-se-ia que já estavam adivinhando que aquela mulher, que por seus encantos e dotes incomparáveis as estava suplantando a todas, não era mais do que — uma escrava. Muitas mesmo se foram retirando, nomeadamente aquelas que afagavam alguma esperança, ou se julgavam com algum direito sobre o coração de Álvaro. Aniquiladas sob o peso dos esmagadores triunfos de Isaura, não se achando com ânimo de manterem-se por mais tempo na liça, tomaram o prudente partido de irem esconder no misterioso recinto das alcovas o despeito e vergonha de tão cruel e solene derrota.

Não diremos todavia que no meio de tantas e tão nobres damas, distintas pelos encantos do espírito e do corpo, não houvesse muitas que, com toda a isenção e sem a menor sombra de inveja, admirassem a beleza de Isaura, e aplaudissem de coração e com sincero prazer os seus triunfos, e foram essas que conseguiram ir dando alguma vida ao sarau, que sem elas teria esmorecido inteiramente. Todavia não é menos certo que do belo sexo, sem distinção de classes, ao menos a metade é ludibrio dessas invejas, ciúmes e rivalidades mesquinhas.