Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Álvaro por seu par. Enquanto dançam, entremos em uma saleta, onde há mesas de jogo, e bufetes guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e champanha. Esta saleta comunica imediatamente com o salão onde se dança, por uma larga porta aberta. Acham-se ai uma meia dúzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estróinas e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça de charuto, ou um copo de champanha, pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora da vida já têm o coração mirrado pelo sopro do cepticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misantropos enfim, cheios de esplim, que se acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda espécie, alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e frivolidades da vida.
Entre eles acha-se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um pouco a atenção, visto que tem de tomar parte um tanto ativa nos acontecimentos desta história. Este nada tem de esplenético nem de byroniano; pelo contrário o seu todo respira o mais chato e ignóbil prosaísmo. Mostra ser mais velho que os seus comparsas uma boa dezena de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o que, na opinião de Lavater, é indicio de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez. O todo da fisionomia tosca e quase grotesca revela instintos ignóbeis, muito egoísmo e baixeza de caráter. O que, porém, mais o caracteriza é certo espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que lhe transpira em todas as palavras, em todos os atos, e principalmente no fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria. É estudante, mas pelo desalinho do trajo, sem o menor esmero e nem sombra de elegância, parece mais um vendilhão. Estudava há quinze anos à sua própria custa, mantendo-se do rendimento de uma taverna, de que era sócio capitalista. Chama-se Martinho.
— Rapaziada, — disse um dos mancebos, — vamos nós aqui a uma partida de lansquenê, enquanto esses basbaques ali estão a arrastar os pés e a fazer mesuras.
— Justo! — exclamou outro, sentando-se a uma mesa e tomando baralhos. — Já que não temos coisa melhor a fazer, vamos às cartas. Demais, no baralho é que está a vida. A vista de uma sota me faz às vezes estremecer o coração em emoções mais vivas do que as sentiria Romeu a um olhar de Julieta... Afonso, Alberto, Martinho, andem para cá; vamos ao lansquenê; duas ou três corridas somente...
— De boa vontade aceitaria o convite, — respondeu Martinho, — se não andasse ocupado com um outro jogo, que de um momento para outro, e sem nada arriscar, pode meter-me na algibeira não menos de cinco contos de réis limpinhos.
— De que diabo de jogo estás aí a falar?... nunca deixarás de ser maluco?... deixa-te de asneiras, e vamos ao lansquenê.
— Quem tem um jogo seguro como eu tenho, há de ir meter-se nos azares do lansquenê, que já me tem engolido bem boas patacas?... Nem tão tolo serei eu.
— Com mil diabos, Martinho!... então não te explicarás?... que maldito jogo é esse?...
— Ora, adivinhem lá... Não são capazes. uma bisca de estrondo. Se adivinharem, dou-lhes uma ceia esplêndida no melhor hotel desta cidade; bem entendido, se encartar a minha bisca.
— Dessa ceia estamos nós bem livres, pobre comedor de bacalhau ardido, e porque não é possível haver quem adivinhe as asneiras que passam lá por esses teus miolos extravagantes. O que queremos é o teu dinheiro aqui sobre a mesa do lansquenê.
— Ora, deixem-me em paz, — disse Martinho, com os olhos atentamente dirigidas para o salão de dança. — Estou calculando o meu jogo... suponham que é o xadrez, e que eu vou dar xeque-mate à rainha... dito e feito, e os cinco contos são meus...
— Não há dúvida, o rapaz está doido varrido... Anda lá, Martinho; descobre o teu jogo, ou vai-te embora, e não nos estejas a maçar a paciência com tuas maluquices.
— Malucos são vocês. O meu jogo é este... mas quanto me dão para descobri-lo? olhem que é coisa curiosa.
— Queres-nos atiçar a curiosidade para nos chuchar alguns cobres, não é assim?... pois desta vez afianço-te da minha parte, que não arranjas nada. Vai-te aos diabos com o teu jogo, e deixa-nos cá com o nosso. As cartas, meus amigos, e deixemos o Martinho com suas maluquices.
— Com suas velhacarias, dirás tu... não me pilha.
— Ah! toleirões! — exclamou o Martinho, — vocês ainda estão com os beiços com que mamaram. Andem cá, andem, e verão se é maluquice, nem velhacaria. Enfim quero mostrar-lhes o meu jogo, porque desejo ver se a opinião de vocês estará ou não de acordo com a minha. Eis aqui a minha bisca. — concluiu Martinho mostrando um papel, que sacou da algibeira; — não é nada mais que um anúncio de escravo fugido.
— Ah! ah! ah! esta não é má!...
— Que disparate!... decididamente estás louco, meu Martinho.
— A que propósito vem agora anúncio de escravo fugido?...
— Foste acaso nomeado oficial de justiça ou capitão-do-mato?
Estas e outras frases escapavam aos mancebos de envolta, em um coro de intermináveis gargalhadas, que competiam com a orquestra do baile.
— Não sei de que tanto se espantam, — replicou frescamente o Martinho; — o que admira é que ainda não vissem este grande anúncio em avulso, que veio do Rio de Janeiro, e foi distribuído por toda a cidade com o jornal do Comércio.
— Porventura somos esbirros ou oficiais de justiça, para nos embaraçarmos com semelhantes anúncios?
— Mas olhem que o negócio é dos mais curiosos, e as alvíssaras não são para se desprezarem.
— Pobre Martinho! quanto pode em teu espírito a ganância de ouro, que faz-te andar à cata de escravos fugidos em uma sala de baile! — pois é aqui que poderás encontrar semelhante gente?...
— Olé... quem sabe?!... tenho cá meus motivos para desconfiar que por aqui mesmo hei de achá-la, assim como os cinco continhos que, aqui entre nós, vêm agora mesmo ao pintar, pois que o armazém de meu sócio bem pouco tem rendido nestes últimos tempos.
Martinho chamava armazém à pequena taverna de que era sócio Ditas aquelas palavras foi postar-se junto à porta que dava para o salão e ali ficou por largo tempo a olhar, ora para os que dançavam, ora para o anúncio, que tinha desdobrado na mão, como quem averigua e confronta os sinais.
— Que diabo faz ali o Martinho? — exclamou um dos mancebos que entretidos com as mímicas do Martinho, tomando-as por palhaçadas, tinham-se esquecido de jogar.
— Está doido, não resta a menor dúvida. — observou outro. — Procurar escravo fugido em uma sala de baile!... Ora não faltava mais nada! Se andasse à cata de alguma princesa, decerto a iria procurar no quilombos.
— Mas talvez seja algum pajem, ou alguma mucama, que por ai anda.
— Não me consta que haja nenhum pajem nem mucama ali dançando, e ele não tira os olhos dos que dançam.
— Deixá-lo; este rapaz, além de ser um vil traficante, sempre foi um maníaco de primeira força.
— É ela! — disse o Martinho, deixando a porta, e voltando-se para seus companheiros; — é ela; já não tenho a menor dúvida; é ela, e está segura.
— Ela quem, Martinho?...
— Ora! pois quem mais há de ser?...