— A escrava fugida?!...
— A escrava fugida, sim, senhores!... e ela está ali dançando.
— Ah! ah! ah! ora, vamos ver mais esta, Martinho!... até onde queres levar a tua farsa? deve ser galante o desfecho. Isto é impagável, e vale mais que quantos bailes há no mundo. — Se todos eles tivessem um episódio assim, eu não perdia nem um. — Assim clamavam os moços entre estrondosas gargalhadas.
— Vocês zombam? — olhem que a farsa cheira um pouco a tragédia.
— Melhor! Melhor! — vamos com isso, Martinho!
— Não acreditam?... pois escutem lá, e depois me dirão que tal é a farsa.
Dizendo isto, Martinho sentou-se em uma cadeira, e desdobrando o anúncio, pôs-se em atitude de lê-lo. Os outros se agruparam curiosos em torno dele.
— Escutem bem, — continuou Martinho. — Cinco contos! — eis o título pomposo, que em eloqüentes e graúdos algarismos se acha no frontispício desta obra imortal, que vale mais que a Ilíada de Camões...
— E que os Lusíadas de Homero, não é assim, Martinho? deixa-te de preâmbulos asnáticos, e vamos ao anúncio.
— Eu já lhes satisfaço, — disse Martinho, e continuou lendo:
Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município de Campos, província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isáura, cujos sinais são os seguintes: Cor clara e tez delicada como de qualquer branca; olhos pretos e grandes; cabelos da mesma cor, compridos e ligeiramente ondeados; boca pequena, rosada e bem feita; dentes alvos e bem dispostos; nariz saliente e bem talhado; cintura delgada, talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um pequeno sinal preto, e acima do seio direito um sinal de queimadura, mui semelhante a uma asa de borboleta. Traja-se com gosto e elegância, canta e toca piano com perfeição. Como teve excelente educação e tem uma boa figura, pode passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade. Fugiu em companhia de um português, por nome Miguel, que se diz seu pai. É natural que tenham mudado o nome. Quem a apreender, e levar ao dito seu senhor, além de se lhe satisfazerem todas as despesas, receberá a gratificação de 5:OOO$OOO.
— Deveras, Martinho? — exclamou um dos ouvintes, — está nesse papel o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de Vênus, e vens dizer-nos que é uma escrava fugida!...
— Se não querem acreditar ainda, leiam com seus próprios olhos: aqui está o papel...
— Com efeito! acrescentou outro — uma escrava assim vale a pena apreendê-la, mais pelo que vale em si, do que pelos cinco contos. Se eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregá-la ao seu senhor.
— Já não me admira que o Martinho a procure aqui; uma criatura tão perfeita só se pode encontrar nos palácios dos príncipes.
— Ou no reino das fadas; e pelos sinais e indícios estou vendo que não pode ser outra senão essa nova divindade que hoje apareceu...
— Sem mais nem menos; deu no vinte, atalhou Martinho, e cha— mando-os para junto da porta: — Agora venham cá, — continuou, — e reparem naquela bonita moça, que dança de par com Álvaro. Pobre Álvaro como está cheio de si! se soubesse com quem dança, caía-lhe a cara aos pés. Reparem bem, meus senhores, e vejam se não combinam perfeitamente os sinais?...
— Perfeitamente! — acudiu um dos moços, — é extraordinário! lá vejo o sinalzinho na face esquerda, e que lhe dá infinita graça. Se tiver a tal asa de borboleta sobre o seio, não pode haver mais dúvida. O céus! é possível que uma moça tão linda seja uma escrava!
— E que tenha a audácia de apresentar-se em um bailes destes? — acrescentou outro. Ainda não posso capacitar-me.
— Pois cá para mim, — disse o Martinho — o negócio é liquido, assim como os cinco contos, que me parece estarem já me cantando na algibeira; e até logo, meus caros.
E dizendo isto dobrou cuidadosamente o anúncio, meteu-o na algi— beira, e esfregando as mãos com cínico contentamento, tomou o chapéu, e retirou-se.
— Forte miserável... — disse um dos comparsas — que vil ganância de ouro a deste Martinho! estou vendo que é capaz de fazer prender aquela moça aqui mesmo em pleno baile.
— Por cinco contos é capaz de todas as infâmias do mundo. Tão vil criatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos conspirar para expeli-lo da Academia. Cinco contos daria eu para ser escravo daquela rara formosura.
— É assombroso! Quem diria, que debaixo daquela figura de anjo estaria oculta uma escrava fugida!
— E também quem nos diz que no corpo da escrava não se acha asilada uma alma de anjo?...
14
Havia terminado a quadrilha. Álvaro ufano, e cheio de júbilo, conduzia o seu formoso par através da multidão, através de uma viva fuzilaria de olhares de inveja e de admiração, que se cruzavam em sua passagem; a pretexto de oferecer-lhe algum refresco, a foi levando para uma sala dos fundos, que se achava quase deserta. Até ali ainda ele não havia feito a Elvira uma declaração de amor em termos positivos, se bem que esse amor se estivesse revelando a cada instante, e cada vez mais ardente e apaixonado, em seus olhos, em suas palavras, em todos os seus movimentos e açóes. Alvaro julgava já ter adquirido completo conhecimento do coração de sua amada, e nos dois meses durante os quais a havia estudado, não havia descoberto nela senão novos encantos e perfeições. Estava plenamente convencido que de todas as formosuras que até ali tinha conhecido, Elvira era em tudo a mais digna de seu amor, e já nem por sombras duvidava da pureza de sua alma, da sinceridade do seu afeto. Pensava portanto que, sem receio algum de comprometer o seu futuro, podia abandonar o coração ao império daquela paixão, que já não podia dominar. Quanto à origem e procedência de Elvira, era coisa de que nem de leve se preocupava, e nunca se lembrou de indagar. A distinção de classes repugnava a seus princípios e sentimentos filantrópicos. Fosse ela uma princesa que o destino obrigava a andar foragida, ou tivesse o berço na palhoça de algum pobre pescador, isso lhe era indiferente. Conhecia-a em si mesma, sabia que era uma das criaturas mais perfeitas e adoráveis que se pode encontrar sobre a Terra, e era quanto lhe bastava.
Observava Alvaro em seus costumes, como já sabemos, a severidade de um quaker, e seria incapaz de abusar do amor que havia inspirado à formosa desconhecida, aninhando em seu espírito um pensamento de sedução.
Naquela noite pois o apaixonado mancebo, rendido e deslumbrado mais que nunca pelos novos encantos e atrativos que Elvira alardeava entre os esplendores do baile, não pôde e nem quis dilatar por mais tempo a declaração, que a cada instante lhe ardia nos olhos, e esvoaçava pelos lábios, e apenas achou-se em lugar onde pudesse não ser ouvido senão de Elvira:
— D. Elvira, — lhe disse com voz grave e comovida, — se a senhora é um anjo em sua casa, nos salões do baile é uma deusa. O meu coração há muito já lhe pertence; sinto que o meu destino de hoje em diante depende só da senhora. Funesta ou propícia, a senhora será sempre a minha estrela nos caminhos da vida. Creio que me conhece bastante para acreditar na sinceridade de minhas palavras. Sou senhor de uma fortuna considerável; tenho posição honrosa e respeitável na sociedade; mas não poderia jamais ser feliz, se a senhora não consentir em partilhar comigo esses bens, que a fortuna prodigalizou-me.
Estas palavras de Álvaro, tão meigas, tão repassadas do mais sincera e profundo amor, que em outras condições teriam caído como bálsamo celeste sobre o coração de Isaura a banhá-lo em inefáveis eflúvios de ventura, eram agora para ela como um atroz e pungente sarcasmo do destino, um hino do céu ouvido entre as torturas do inferno. Via de um lado um anjo, que, tomando-a pela mão com um suave sorriso, mostrava-lhe um éden de delícias, ao qual se esforçava por conduzi-la, enquanto de outro lado a hedionda figura de um demônio atava-lhe ao pé um pesado grilhão, e com todo o seu peso a arrastava para um gólfão de eternos sofrimentos.