Entretanto, esta pequena altercação começava a atrair a atenção geral, e numerosos grupos movidos de curiosidade se apinhavam em torno dos contendores. A frase fatal — esta senhora é uma escrava! — proferida em voz alta por Martinho, transmitida de grupo em grupo, de ouvido em ouvido, já havia circulado com incrível celeridade por todas as salas e recantos do espaçoso edifício. Um sussurro geral se propagara por todo ele, e damas e cavalheiros, e tudo o que ali se achava, inclusive músicos, porteiros e fâmulos, atropelando-se uns aos outros, arrojavam-se afanosos para a sala, onde se dava o singular incidente que estamos relatando. A sala estava literalmente apinhada de gente, que afiava o ouvido e alongava o pescoço o mais que podia para ver e ouvir o que se passava.
Foi no meio desta multidão silenciosa, imóvel, estupefata e anelante, que Martinho, sacando tranqüilamente da algibeira o anúncio, que nós já conhecemos, desdobrou-o ante seus olhos, e em voz bem alta e sonora o leu de principio a fim.
— Bem se vê, — continuou ele concluída a leitura, — que os sinais combinam perfeitamente, e só um cego não verá naquela senhora a escrava do anúncio. Mas para tirar toda a dúvida, só resta examinar se ela tem o tal sinal de queimadura acima do seio, e é coisa que desde já se pode averiguar com licença da senhora.
Dizendo isto, Martinho com impudente desembaraço se encaminhava para Isaura.
— Alto lá, vil esbirro!... bradou Álvaro com força, e agarrando o Martinho pelo braço, o arrojou para longe de Isaura, e o teria lançado em terra, se ele não fosse esbarrar de encontro ao grupo, que cada vez mais se apertava em torno deles. — Alto lá! nem tanto desembaraço! escrava, ou não, tu não lhe deitarás as mãos imundas.
Aniquilada de dor e de vergonha, Isaura erguendo enfim o rosto, que até ali tivera sempre debruçado e escondido sobre o seio de seu pai, voltou-se para os circunstantes, e ajuntando as mãos convulsas no gesto da mais violenta agitação:
— Não é preciso que me toquem, — exclamou com voz angustiada.
— Meus senhores, e senhoras, perdão! cometi uma infâmia, uma indignidade imperdoável!... mas Deus me é testemunha, que uma cruel fatalidade a isso me levou. Senhores, o que esse homem diz, é verdade. Eu sou... uma escrava!...
O rosto da cativa cobriu-se de lividez cadavérica, como lírio ceifado pendeu-lhe a fronte sobre o seio, e o donoso corpo desabou como bela estátua de mármore, que o furacão arranca do pedestal, e teria rojado pela terra, se os braços de Álvaro e de Miguel não tivessem prontamente acudido para amparar-lhe a queda.
Uma escrava!... estas palavras, soluçadas no peito de Isaura como o estertor do arranco extremo, murmuradas de boca em boca pela multidão estupefata, ecoaram largo tempo pelos vastos salões, como o rugir sinistro das lufadas da noite pela grenha de fúnebre arvoredo.
Este estranho incidente produziu no sarau o mesmo efeito que faria em um acampamento a explosão de um paiol de pólvora; nos primeiros momentos, susto, pasmo e uma espécie de estertor de angústia; depois, agitação, alarma, movimento e alarido.
Álvaro e Miguel conduziram Isaura desfalecida ao boudoir das damas, e aí, ajudados por algumas senhoras compassivas, prestaram-lhe os socorros que o caso reclamava, e não a abandonaram enquanto não recobrou completamente os sentidos. Martinho, inquieto e ressabiado, os seguia e espiava o mais de perto que lhe era possível, com receio de que lhe roubassem a presa.
É impossível descrever a celeuma que se levantou, a agitação que sublevou todos os espíritos, e as diversas e opostas impressões que produziu nos ânimos aquela inesperada revelação. Com que cara ficariam tantas belezas de primeira ordem, tantas damas das mais distintas jerarquias sociais, ao saberem que aquela que as havia suplantado a todas, em formosura, donaire, talentos e graças do espírito, não era mais que uma escrava! eu mesmo não sei dizer; os leitores que façam idéia. Entretanto em muitas delas o cruel desapontamento por que acabavam de passar não deixava de ser mesclado de um certo contentamento íntimo, mormente naquelas que se sentiam enfadadas pelas deferências e homenagens que certos cavalheiros, tomados de entusiasmo, haviam francamente rendido à gentil desconhecida. Estavam humilhadas, mas também vingadas. Quanto ás que tinham esperanças ou pretensões ao amor de Alvaro, — e não eram poucas, — essas exultaram de júbilo ao saberem do caso, e o nobre mancebo tornou-se o alvo de mil desapiedados apodos e pilhérias.
— O que me diz do escravo da escrava? — diziam elas — com que cara não ficaria o pobre homem!...
— Com a mesma. Decerto vai forrá-la e casar-se com ela. Aquilo é um maluco capaz de todas as asneiras.
— E que mau! Terá ao mesmo tempo mulher e talvez uma boa cozinheira.
Triste consolação! o estigma do cativeiro não podia apagar da bela fronte de Isaura, antes mais realçava o cunho de superioridade que o sopro divino nela havia gravado em caracteres indeléveis.
Entre os mancebos a impressão era bem diferente. Poucos, bem poucos, deixavam de tomar vivo interesse e compaixão pela sorte da infeliz e formosa escrava. Por todos os cantos falava-se e discutia-se com calor a respeito do caso. Alguns, a despeito da evidência dos indícios e da confissão de Isaura, ainda duvidavam da verdade que tinham diante dos olhos.
— Não; aquela mulher não pode ser uma escrava, — diziam eles, — aqui há algum mistério, que algum dia se desvendará.
— Qual mistério? o caso é muito factível, e ela mesma o confessou. Mas quem será esse bruto e desalmado fazendeiro, que conserva no cativeiro uma tão linda criatura?
— Deve ser algum lorpa de alma bem estúpida e sórdida.
— Se não for algum sultãozinho de bom gosto, que a quer para o seu serralho.
— Seja como for, esse bruto deve ser constrangido a dar-lhe a liberdade. Na senzala uma mulher que merecia sentar-se num trono!...
— Também só o infame do Martinho, com o seu satânico instinto de cobiça, poderia farejar uma escrava na pessoa daquele anjo! que impudência! se o visse agora aqui, era capaz de estrangulá-lo!
Entretanto, Martinho, que se havia previamente munido de um mandado de apreensão, e se fazia acompanhar de um oficial de justiça, exigia terminantemente que se lhe fizesse entrega de Isaura. Álvaro, porém, interpondo o valimento e prestígio de que gozava, opôs-se decididamente a essa exigência, e tomando por testemunhas as pessoas que ali se achavam, constituiu-se fiador da escrava, comprometendo-se a entregá-la a seu senhor, ou a quem por ordem dele a reclamasse. Em vão Martinho quis insistir; uma multidão de vozes, que o apupavam e cobriam de injúrias, forçaram-no a calar-se e desistir de sua pretensão.
— Ah! malditos! querem-me roubar! — bradava Martinho como um possesso. — Meus cinco contos! ai! meus cinco contos! lá se vão pela água abaixo.
E dizendo isto procurou a escada, e saltando-a aos dois e três degraus, lá se foi bramindo pela porta a fora.
15
Já é passado cerca de um mês depois dos acontecimentos que acabamos de narrar. Isaura e Miguel, graças à valiosa intervenção de Álvaro, continuam a habitar a mesma pequena chácara no bairro de Santo Antônio. Já não lhes sendo mais possível pensar em fugir para mais longe nem ocultarem-se, ali se conservam por conselho de seu protetor, esperando o resultado dos passos que este se comprometera a dar em favor deles, porém sempre na mais angustiosa inquietação, como Dâmocles tendo sobre a cabeça aguda espada suspensa por um fio.
Álvaro vai quase todos os dias à casa dos dois foragidos, e ali passa longas horas entretendo-os sobre os meios de conseguir a liberdade de sua protegida, e procurando confortá-los na esperança de melhor destino.