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— Pela qual há de me dar completa e solene satisfação, eu o protesto.

— Pondo de parte a insolência, se nada tens de valioso a apresentar em favor da liberdade da tua protegida, ele tem o incontestável direito de reclamar e apreender a sua escrava onde quer que se ache.

— Infame e cruel direito é esse, meu caro Geraldo. É já um escárnio dar-se o nome de direito a uma instituição bárbara, contra a qual protestam altamente a civilização, a moral e a religião. Porém, tolerar a sociedade que um senhor tirano e brutal, levado por motivos infames e vergonhosos, tenha o direito de torturar uma frágil e inocente criatura, só porque teve a desdita de nascer escrava, é o requinte da celeradez e da abominação.

— Não é tanto assim, meu caro Álvaro; esses excessos e abusos devem ser coibidos; mas como poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar doméstico, e ingerir-se no governo da casa do cidadão? que abomináveis e hediondos mistérios, a que a escravidão dá lugar, não se passam por esses engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos, deles tenham conhecimento?... Enquanto houver escravidão, hão de se dar esses exemplos. Uma instituição má produz uma infinidade de abusos, que só poderão ser extintos cortando-se o mal pela raiz.

— É desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona desumanamente essas vítimas ao furor de seus algozes, ainda há no mundo almas generosas que se incumbem de protegê-las ou vingá-las. Quanto a mim protesto, Geraldo, enquanto no meu peito pulsar um coração, hei de disputar Isaura à escravidão com todas as minhas forças, e espero que Deus me favorecerá em tão justa e santa causa.

— Pelo que vejo, meu Álvaro, não procedes assim só por espírito de filantropia, e ainda amas muito a essa escrava.

— Tu o disseste, Geraldo; amo-a muito, e hei de amá-la sempre e nem disso faço mistério algum. E será coisa estranha ou vergonhosa amar-se uma escrava? O patriarca Abraão amou sua escrava Agar, e por ela abandonou Sara, sua mulher. A humildade de sua condição não pode despojar Isaura da cândida e brilhante auréola de que a via e até hoje a vejo circundada. A beleza e a inocência são astros que mais refulgem quando engolfados na profunda escuridão do infortúnio.

— É bela a tua filosofia, e digna de teu nobre coração; mas que queres? as leis civis, as convenções sociais, são obras do homem, imperfeitas, injustas, e muitas vezes cruéis. O anjo padece e geme sob o jugo da escravidão, e o demônio exalça-se ao fastígio da fortuna e do poder.

— E assim pois, — refletiu Álvaro com desânimo, — nessas desastradas leis nenhum meio encontras de disputar ao algoz essa inocente vítima?

— Nenhum, Álvaro, enquanto nenhuma prova puderes aduzir em prol do direito de tua protegida. A lei no escravo só vê a propriedade, e quase que prescinde nele inteiramente da natureza humana. O senhor tem direito absoluto de propriedade sobre o escravo, e só pode perdê-lo manumitindo-o ou alheando-o por qualquer maneira, ou por litígio provando-se liberdade, mas não por sevícias que cometa ou outro qualquer motivo análogo.

— Miserável e estúpida papelada que são essas vossas leis. Para ilaquear a boa-fé, proteger a fraude, iludir a ignorância, defraudar o pobre e favorecer a usura e rapacidade dos ricos, são elas fecundas em recursos e estratagemas de toda a espécie. Mas quando se tem em vista um fim humanitário, quando se trata de proteger a inocência desvalida contra a prepotência, de amparar o infortúnio contra uma injusta perseguição, então ou são mudas, ou são cruéis. Mas não obstante elas, hei de empregar todos os esforços ao meu alcance para libertar a infeliz do afrontoso jugo que a oprime. Para tal empresa alenta-me não já somente um impulso de generosidade, como também o mais puro e ardente amor, sem pejo o confesso.

O amigo de Álvaro arrepiou-se com esta deliberação tão franca e entusiasticamente proclamada com essa linguagem tão exaltada, que lhe pareceu um deplorável desvario da imaginação.

— Nunca pensei, replicou com gravidade, — que a tal ponto chegasse a exaltação desse teu excêntrico e malfadado amor. Que por um impulso de humanidade procures proteger uma escrava desvalida, nada mais digno e mais natural. O mais não passa de delírio de uma imaginação exaltada e romanesca. Será airoso e digno da posição que ocupas na sociedade, deixares-te dominar de uma paixão violenta por uma escrava?

— Escrava! — exclamou Álvaro cada vez mais exaltado, — isso não passa de um nome vão, que nada exprime, ou exprime uma mentira. Pureza de anjo, formosura de fada, eis a realidade! Pode um homem ou a sociedade inteira contrariar as vistas do Criador, e transformar em uma vil escrava o anjo que sobre a Terra caiu das mãos de Deus?...

— Mas por uma triste fatalidade o anjo caiu do céu no lodaçal da escravidão, e ninguém aos olhos do mundo o poderá purificar dessa nódoa, que lhe mancha as asas. Álvaro, a vida social está toda juncada de forcas caudinas, por debaixo das quais nos é forçoso curvar-nos, sob pena de abalroarmos a fronte em algum obstáculo, que nos faça cair. Quem não respeita as conveniências e até os preconceitos sociais, arrisca-se a cair no descrédito ou no ridículo.

— A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito por um preconceito absurdo, resultante de um abuso que nos desonra aos olhos do mundo civilizado. Seja eu embora o primeiro a dar esse nobre exemplo, que talvez será imitado. Sirva ele ao menos de um protesto enérgico e solene contra uma bárbara e vergonhosa instituição.

— És rico, Álvaro, e a riqueza te dá bastante independência para poderes satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua imaginação romanesca. Mas tua riqueza, por maior que seja, nunca poderia reformar os prejuízos do mundo, nem fazer com que essa escrava, a quem segundo todas as aparências quererias ligar o teu destino, fosse considerada, e nem mesmo admitida nos círculos da alta sociedade...

— E que me importam os círculos da alta sociedade, uma vez que sejamos bem acolhidos no meio das pessoas de bom senso, e coração bem formado? Demais, enganas-te completamente, meu Geraldo. O mundo corteja sempre o dinheiro, onde quer que ele se ache. O ouro tem um brilho que deslumbra, e apaga completamente essas pretendidas nódoas de nascimento. Não nos faltarão, nunca, eu te afianço, o respeito, nem a consideração social, enquanto nos não faltar o dinheiro.

— Mas, Álvaro, esqueces-te de uma coisa muito essencial; e se te não for possível obter a liberdade de tua protegida?...

A esta pergunta Álvaro empalideceu, e oprimido pela idéia de tão cruel como possível alternativa, sem responder — palavra olhava tristemente para o horizonte, quando o boleeiro de Álvaro, que se achava postado com sua caleça junto à porta do jardim, veio anunciar-lhe que algumas pessoas o procuravam e desejavam falar-lhe, ou ao dono da casa.

— A mim! — resmungou Álvaro; porventura estou eu em minha casa?... mas como também procuram o dono desta... faça-os entrar.

— Álvaro, disse Geraldo espreitando por uma janela, — se me não engano, é gente da polícia; parece-me que lá vejo um oficial de justiça. Teremos outra cena igual à do baile?...

— Impossível!.., com que direito virão tocar-me no depósito sagrado, que a mesma polícia me confiou!...

— Não te fies nisso. A justiça é uma deusa muito volúvel e fértil em patranhas. Hoje desmanchará o que fez ontem.

16

O primeiro cuidado de Martinho logo ao sair do baile, em que viu malograda a sua tentativa de apreender Isaura, foi escrever ao senhor dela uma longa e minuciosa carta, comunicando-lhe que tinha tido a fortuna de descobrir a escrava que tanto procurava.

Contava por miúdo as diligências que fizera para esse fim, até descobri-la em um baile público e encarecia o seu próprio mérito e perspicácia para esbirro, dizendo que a não ser ele, ninguém seria capaz de farejar uma escrava na pessoa de uma moça tão bonita e tão prendada. Alterando os fatos e as circunstâncias do modo o mais atroz e calunioso, dizia-lhe em frases de taverneiro, que Miguel se estabelecera no Recife com Isaura a fim de especular com a formosura da filha, a qual, a poder de armar laços à rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim conseguido apanhar um patinho bem gordo e fácil de depenar. Era este um pernambucano por nome Álvaro, moço duas vezes milionário, e mil vezes desmiolado, que tinha por ela uma paixão louca. Este moço, a quem ela trazia iludido e engodado ao ponto de ele querer desposá-la, caiu na tolice de levá-la a um baile, onde ele Martinho teve a fortuna de descobri-la, e a teria apreendido, e estaria ela já de marcha para o poder de seu senhor, se não fosse a oposição do tal senhor Álvaro, que apesar de ficar sabendo de que ralé era a sua heroína, teve a pouca-vergonha de protegê-la escandalosamente. Prevalecendo-se das valiosas relações, e da influência de que gozava no país em razão de sua riqueza, conseguiu impedir a sua apreensão, e tornando-se fiador dela a conservava em seu poder contra toda a razão e justiça, protestando não entregá-la senão ao seu próprio senhor. Julga que a intenção de Álvaro é tentar meios de libertá-la, a fim de fazê-la sua mulher ou sua amásia. Julgava de seu dever comunicar-lhe tudo isso para seu governo.