Выбрать главу

Era este em suma o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguiu para o Rio de Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Álvaro, fazendo proposições para a liberdade de Isaura. Leôncio, contente com a descoberta, mas cheio de ciúme e inquietação em vista das informações de Martinho, apressou-se em responder a ambos, e o mesmo paquete que trouxe a resposta insolente e insultuosa que dirigiu a Álvaro, foi portador da que se destinava a Martinho, na qual o autorizava a apreender a escrava em qualquer parte que a encontrasse, e para maior segurança remetia-lhe também procuração especial para esse fim, e mais algumas cartas de recomendação de pessoas importantes para o chefe de policia, para que o auxiliasse naquela diligência.

Martinho mais que depressa dirigiu-se à casa da polícia, e apresentando ao chefe todos esses papéis, requereu-lhe que mandasse entregar-lhe a escrava. O chefe em vista dos documentos de que Martinho se achava munido, entendeu que não lhe era possível denegar-lhe o que pedia, e expediu ordem por escrito, para que lhe fosse entregue a escrava em questão. e deu-lhe um oficial de justiça e dois guardas para efetuarem a diligência.

Foi, portanto, o Martinho, que, munido de todos os poderes, competentemente autorizado pela polícia, apresentou-se com sua escolta à porta da casa de Isaura, para arrebatar a Alvaro a cobiçada presa.

— Ainda este infame! — murmurou Álvaro entre os dentes ao ver entrar o Martinho. — Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado mancebo arrancara do íntimo da alma.

— Que deseja de mim o senhor? — perguntou Álvaro em tom seco e altivo.

— V. S.ª que bem me conhece, — respondeu Martinho, — já pode presumir pouco mais ou menos o motivo que aqui me traz.

— Nem por sombras posso adivinhá-lo, antes me causa estranheza esse aparato policial, de que vem acompanhado.

— Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma escrava fugida, por nome Isaura, que há muito tempo foi por mim apreendida no meio de um baile, no qual se achava V. S.ª e devendo eu enviá-la a seu senhor no Rio de Janeiro, V. S.ª a isso se opôs sem motivo algum justificável, conservando-a até hoje em seu poder contra todo o direito.

— Alto lá, senhor Martinho! penso que não é pessoa competente para dar ou tirar direito a quem lhe parecer. O senhor bem sabe que eu sou depositário dessa escrava, e que com todo o direito e consentimento da autoridade a tenho debaixo de minha proteção.

— Esse direito, se é que se pode chamar direito a uma arbitrariedade, cessou, desde que V. S.ª nada tem alegado em favor da mesma escrava. E demais, — continuou apresentando um papel, — aqui está ordem expressa e terminante do chefe de polícia, mandando que me seja entregue a dita escrava. A isto nada se pode opor legalmente.

— Pelo que vejo, senhor Martinho, — disse Álvaro depois de examinar rapidamente o papel que Martinho lhe entregara, — ainda não desistiu de seu indigno procedimento, tornando-se por um pouco de dinheiro o vil instrumento do algoz de uma infeliz mulher? Reflita, e verá que essa infame ação só pode inspirar asco e horror a todo o mundo.

Martinho achando-se acostado pela policia, julgou-se com direito de mostrar-se áspero e arrogante, e, portanto, com imperturbável sangue-frio:

— Senhor Álvaro, — respondeu, — eu vim a esta casa somente com o fim de exigir em nome da autoridade a entrega de uma escrava fugida, que aqui se acha acoutada, e não para ouvir repreensões, que o senhor não tem direito de dar-me. Trate de fazer o que a lei ordena e a prudência aconselha, se não quer que use de meu direito...

— Qual direito?!...

— De varejar esta casa e levar à força a escrava.

— Retira-te, miserável esbirro! — bradou Álvaro com força, não podendo mais sopear a cólera. — Desaparece de minha presença, se não queres pagar caro o teu atrevimento!...

— Senhor Álvaro!... veja o que faz!

O Dr. Geraldo, não achando muita razão em seu amigo, por prudência até ali se tinha conservado silencioso, mas vendo que a cólera e imprudência de Alvaro ia excedendo os limites, julgou de seu dever intervir na questão, e aproximando-se de Alvaro, e puxando-lhe o braço:

— Que fazes, Álvaro? — disse-lhe em voz baixa. — Não vês que com esses arrebatamentos não consegues senão comprometer-te, e agravar a sorte de Isaura? mais prudência, meu amigo.

— Mas... que devo eu fazer?... não me dirás?

— Entregá-la.

— Isso nunca!... — replicou Álvaro terminantemente.

Conservaram-se todos silenciosos por alguns momentos. Álvaro parecia refletir.

— Ocorre-me um expediente, — disse ele ao ouvido de Geraldo, — vou tentá-lo.

E sem esperar resposta aproximou-se de Martinho.

— Senhor Martinho, — disse-lhe ele, — desejo dizer-lhe duas palavras em particular, com permissão aqui do doutor.

— Estou às suas ordens, — replicou Martinho.

— Estou persuadido, senhor Martinho, — disse-lhe Alvaro em voz baixa, tomando-o de parte, — que a gratificação de cinco contos é o motivo principal que o leva a proceder desta maneira contra uma infeliz mulher, que nunca o ofendeu. Está em seu direito, eu reconheço, e a soma não é para desprezar. Mas se quiser desistir completamente desse negócio, e deixar em paz essa escrava, dou-lhe o dobro dessa quantia.

— O dobro!... dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando os olhos.

— Justamente; dez contos de réis de hoje mesmo.

— Mas, senhor Alvaro, já empenhei minha palavra para com o senhor da escrava, dei passos para esse fim, e...

— Que importa!... diga que ela evadiu-se de novo, ou dê outra qualquer desculpa...

— Como, se é tão público que ela se acha em poder de V. S.ª ?...

— Ora!... isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem vivo e atilado como o senhor embaraça-se com tão pouca coisa!...

— Vá, feito — disse Martinho depois de refletir um instante. — Já que Sa. tanto se interessa por essa escrava, não quero mais afligi-lo com semelhante negócio, que a dizer-lhe a verdade bem me repugna. Aceito a proposta.

— Obrigado; é um importante serviço que vai me prestar.

— Mas que volta darei eu ao negócio para sair-me bem dele?

— Veja lá; sua imaginação é fácil em recursos, e há de inspirar-lhe algum meio de safar-se de dificuldades com a maior limpeza.

Martinho ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e com os olhos pregados no chão. Por fim levantando a cabeça e levando à testa o dedo índice: