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O pai porém não se animou a confiar sua fortuna aos azares especulativos daquele financeiro em botão, e que até ali só tinha dado provas de grande talento para consumir, em pouco tempo e em pura perda, somas consideráveis. Resolveu portanto a não tocar-lhe mais naquele assunto, esperando que o mancebo criasse mais algum juízo.

Vendo que seu pai esquecia-se completamente dos planos de criar-lhe um pecúlio próprio, Leôncio olhou para o casamento como o meio suave e natural de adquirir fortuna, como a única carreira que se lhe oferecia para ter dinheiro a esbanjar a seu bel-prazer.

Malvina, a formosa filha de um riquíssimo negociante da corte, amigo do comendador, já estava destinada a Leôncio por comum acordo e aquiescência dos pais de ambos. A família do comendador foi à corte; os moços viram-se, amaram-se e casaram; foi coisa de poucos dias. Pouco tempo depois de seu casamento Leôncio passou pelo desgosto de perder sua mãe por um golpe inesperado. Esta boa e respeitável senhora não tinha sido muito feliz nas relações da vida íntima com seu marido, que, como homem de coração árido e frio, desconhecia as santas e puras delícias da afeição conjugal, e com suas libertinagens e devassidões dilacerava cotidianamente o coração de sua esposa. Para cúmulo de males linha ela perdido ainda na infância todos os seus filhos, ficando-lhe só Leôncio. Lastimava-se principalmente por não ter-lhe deixado o céu ao menos uma filha, que lhe servisse de companhia e consolação em sua desolada velhice. Quis entretanto a sorte deparar-lhe em sua própria casa uma tal ou qual compensação a seus infortúnios em uma frágil criatura, que veio de alguma sorte encher o vácuo que sentia em seu bondoso e terno coração, e tornar menos triste e solitário o lar, em que passava os dias tão monótonos e enfadonhos.

Havia nascido em casa uma escravinha, que desde o berço atraiu por sua graça, gentileza e vivacidade toda a atenção e solicitude da boa velha.

Isaura era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama favorita e a criada fiel da esposa do comendador. Este, que como homem libidinoso e sem escrúpulos olhava as escravas como um serralho à sua disposição, lançou olhos cobiçosos e ardentes de lascívia sobre a gentil mucama. Por muito tempo resistiu ela ás suas brutais solicitações; mas por fim teve de ceder às ameaças e violências. Tão torpe e bárbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar oculto aos olhos de sua virtuosa esposa, que com isso concebeu mortal desgosto.

Acabrunhado por ela das mais violentas e amargas exprobrações, o comendador não ousou mais empregar a violência contra a pobre escrava, e nem tampouco conseguiu jamais por outro qualquer meio superar a invencível repugnância que lhe inspirava. Enfureceu-se com tanta resistência, e deliberou em seu coração perverso vingar-se da maneira a mais bárbara e ignóbil, acabrunhando-a de trabalhos e castigos. Exilou-a da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicados serviços, para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recomendando bem ao feitor que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor, porém, que era um bom português ainda no vigor dos anos, e que não tinha as entranhas tão empedernidas como o seu patrão, seduzido pelos encantos da mulata, em vez de trabalho e surras, só lhe dava carícias e presentes, de maneira que daí a algum tempo a mulata deu à luz da vida a gentil escravinha, de que falamos. Este fato veio exacerbar ainda mais a sanha do comendador contra a mísera escrava. Expeliu com impropérios e ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a tão rudes trabalhos e tão cruel tratamento, que em breve a precipitou no túmulo, antes que pudesse acabar de criar sua tenra e mimosa filhinha.

Eis aí debaixo de que tristes auspícios nasceu a linda e infeliz Isaura. Todavia, como para indenizá-la de tamanha desventura, uma santa mulher, um anjo de bondade, curvou-se sobre o berço da pobre criança e veio ampará-la à sombra de suas asas caridosas. A mulher do comendador considerou aquela tenra e formosa cria como um mimo, que o céu lhe enviava para consolá-la das angústias e dissabores, que tragava em conseqüência dos torpes desmandos de seu devasso marido. Levantou ao céu os olhos banhados em lágrimas, e jurou pela alma da infeliz mulata encarregar-se do futuro de Isaura. criá-la e educá-la, como se fosse uma filha.

Assim o cumpriu com o mais religioso escrúpulo. À medida que a menina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ela mesma ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe também mestres de música, de dança, de italiano, de francês, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se enfim em dar à menina a mais esmerada e fina educação, como o faria para com uma filha querida. Isaura, por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas graças e atrativos corporais, como pelos rápidos progressos de sua viva e robusta inteligência, foi muito além das mais exageradas esperanças da excelente velha, a qual em vista de tão felizes e brilhantes resultados, cada vez mais se comprazia em lapidar e polir aquela jóia, que ela dizia ser a pérola entrançada em seus cabelos brancos. — O céu não quis dar-me uma filha de minhas entranhas, — costumava ela dizer, — mas em compensação deu-me uma filha de minha alma.

O que porém mais era de admirar na interessante menina, é que aquela predileção e extremosa solicitude de que era objeto, não a tornava impertinente, vaidosa ou arrogante nem mesmo para com seus parceiros de cativeiro. O mimo, com que era tratada, em nada lhe alterava a natural bondade e candura do coração. Era sempre alegre e boa com os escravos, dócil e submissa com os senhores.

O comendador não gostava nada do singular capricho de sua esposa para com a mulatinha, capricho que qualificava de caduquice.

— Forte loucura! — costumava exclamar com acento de comiseração. — Está ai se esmerando em criar uma formidável tafulona, que lá pelo tempo adiante há de lhe dar água pela barba. As velhas, umas dão para rezar, outras para ralhar desde a manhã até à noite, outras para lavar cachorrinhos ou para criar pintos; esta deu para criar mulatinhas princesas. É um divertimento um pouco mais dispendioso na verdade; mas.., que lhe faça bom proveito; ao menos enquanto se entretém por lá com o seu embeleco, poupa-me uma boa dúzia de impertinentes e rabugentos sermões... Lá se avenha!...

Poucos dias depois do casamento de Leôncio, o comendador, com toda a família, inclusive os dois novos desposados, transportou-se de novo para a fazenda de Campos. Foi então que o comendador entregou a seu filho toda a administração e usufruto daquela propriedade, com toda a escravatura e mais acessórios nela existentes, declarando-lhe que achando-se já bastante velho, enfermo e cansado, queria passar tranqüilamente o resto de seus dias livre de afazeres e preocupações, para o que bastavam-lhe com sobejidão as rendas que para si reservava. Feita em vida esta magnífica dotação a seu filho, retirou-se para a corte. Sua esposa porém preferiu ficar em companhia do filho, o que foi muito do gosto e aprovação do marido.

Malvina, que apesar da sua vaidade aristocrática tinha alma cândida e boa, e um coração bem formado, não pôde deixar de conceber logo desde o principio o mais vivo interesse e terna afeição pela cativa Isaura. Era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e submissa, que apesar de sua grande beleza e incontestáveis dotes de espírito, conquistava logo ao primeiro encontro a benevolência de todos.

Isaura tornou-se imediatamente, não direi a mucama favorita, mas a fiel companheira, a amiga de Malvina que, afeita aos prazeres e passatempos da corte, muito folgou de encontrar tão boa e amável companhia na solidão que ia habitar.

— Por que razão não libertam esta menina? — dizia ela um dia à sua sogra. — Uma tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava.

— Tem razão, minha filha, — respondeu bondosamente a velha; — mas que quer você?... não tenho ânimo de soltar este passarinho que o céu me deu para me consolar e tornar mais suportáveis as pesadas e compridas horas da velhice.