— Atinei! exclamou. — Dizer que a escrava desapareceu de novo, não é conveniente, e iria comprometer a V. S.ª que se responsabilizou por ela. Direi somente que, bem averiguado o caso, reconheci que a moça, que Sa. tem em seu poder, não é a escrava em questão, e está tudo acabado.
— Essa não é mal achada... mas foi um negócio tão público...
— Que importa!... não se lembra V. S.ª de um sinal em forma de queimadura em cima do seio esquerdo, que vem consignado no anúncio? direi, que não se achou semelhante sinal, que é muito característico, e está destruída a identidade de pessoa. Acrescentarei mais que a moça, por quem V. S.ª se interessa, vista de noite é uma coisa, e de dia é outra; que em nada se parece com a linda escrava que se acha descrita no anúncio, e que em vez de ter vinte anos mostra ter seus trinta e muitos para quarenta, e que toda aquela mocidade e formosura era efeito dos arrebiques, e da luz vacilante dos lustres e candelabros.
— O senhor é bem engenhoso. — observou Alvaro sorrindo-se; — mas os que a viram nenhum crédito darão a tudo isso. Resta, porém, ainda uma dificuldade, senhor Martinho; é a confissão que ela fez em público!... isto há de ser custoso de embaraçar-se.
— Qual custoso!... alega-se que ela é sujeita a acessos de histerismo, e é sujeita a alucinações.
— Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua perícia e habilidade. E depois?
— E depois comunico tudo isso ao chefe de policia, declaro-lhe que nada mais tenho com esse negócio, passo a procuração a qualquer meirinho, ou capitão-do-mato, que se queira encarregar dessa diligência, e em ato contínuo escrevo ao senhor da escrava comunicando-lhe o meu engano, com o que ele por certo desistirá de procurá-la mais por aqui, e levará a outras partes as suas pesquisas. Que tal acha o meu plano?...
— Admirável, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho.
— Vou já neste andar, e em menos de duas horas estou aqui de volta, a dar parte do desempenho de minha comissão.
— Aqui não, que não poderei demorar-me muito. Espero-o em minha casa, e lá receberá a soma convencionada.
— Podem-se retirar, — disse Martinho ao oficial de justiça e aos guardas, que se achavam postados do lado de fora da porta. — Sua presença não é mais necessária aqui. Não há dúvida! — continuou ele consigo mesmo: — isto vai a dobrar como no lansquenê. Esta escrava é uma mina, que me parece não estar ainda esgotada.
E retirou-se, esfregando as mãos de contentamento.
— Então, que arranjo fizeste com o homem, meu Álvaro? — perguntou Geraldo, apenas Martinho voltou as costas.
— Excelente, — respondeu Álvaro; — a minha lembrança surtiu o desejado efeito, e ainda mais do que eu esperava.
Álvaro em poucas palavras deu conta ao seu amigo do mercado que fizera com o Martinho.
— Que caráter desprezível e abjeto o deste Martinho! — exclamou Geraldo. — De um tal instrumento não se pode esperar obra que preste. E julgas ter conseguido muita coisa, Álvaro, com o passo que acabas de dar?...
— Não muito, porém alguma coisa sempre posso conseguir. Pelo menos consigo deter o golpe por algum tempo, e como diz lá o rifão popular, meu Geraldo, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Enquanto Leôncio, persuadido que a sua escrava não se acha aqui no Recife, a procura por todo esse mundo, ela fica aqui tranqüilamente à minha sombra, livre das perseguições e dos maus-tratos de um bárbaro senhor; e eu terei tempo para ativar os meios de arranjar provas e documentos que justifiquem o seu direito à liberdade. É quanto me basta por agora; quanto ao resto, já que pareces julgar a minha causa irremissivelmente perdida, a justiça divina me inspirará o modo por que devo proceder.
— Como te enganas, meu pobre Álvaro!... cuidas que arredando o Martinho ficas por enquanto livre de perseguições e pesquisas contra a tua protegida? que cegueira!... não faltarão malsins igualmente esganados por dinheiro, que pelos cinco contos de réis, que para estes miseráveis é uma soma fabulosa, se ponham à cata de tão preciosa presa. Agora principalmente, que o Martinho deu o alarma, e que esse negócio tem atingido a um certo grau de celebridade, em vez de um, aparecerão cem Martinhos no encalço da bela fugitiva, e não terão mais que fazer senão seguir a trilha batida pelo primeiro.
— És muito meticuloso, Geraldo, e encaras as coisas sempre pelo lado pior. É bem provável que peguem as patranhas inventadas pelo Martinho, e que ninguém mais se lembre de descobrir a cativa Isaura nessa moça, por quem me interesso, e embora mil malsins a procurem por todos os cantos do mundo, pouco me importará. Sempre obtenho uma dilação, que poderá me ser muito vantajosa.
— Pois bem, Álvaro; vamos que assim aconteça; mas tu não vês que semelhante procedimento não é digno de ti?... que assim incorres realmente nos epítetos afrontosos, com que obsequiou-te o tal Leôncio, e que te tomas verdadeiramente um sedutor e acoutador de escravos alheios?...
— Desculpa-me, meu caro Geraldo; não posso aceitar a tua reprimenda. Ela só pode ter aplicação aos casos vulgares, e não às circunstâncias especialíssimas em que eu e Isaura nos achamos colocados. Eu não dou couto, nem capeio a uma escrava: protejo um anjo, e amparo uma vítima inocente contra a sanha de um algoz. Os motivos que me impelem, e as qualidades da pessoa por quem dou estes passos, nobilitam o meu procedimento, e são bastantes para justificar-me aos olhos de minha consciência.
— Pois bem, Alvaro; faze o que quiseres; não sei que mais possa dizer-te para demover-te de um procedimento, que julgo não só imprudente, como, a falar-te com sinceridade, ridículo, e indigno da tua pessoa.
Geraldo não podia dissimular o descontentamento que lhe causava aquela cega paixão, que levava o seu amigo a atos que qualificava de burlesco desatino, e loucura inqualificável. Por isso, longe de auxiliá-lo com seus conselhos, e indicar-lhe os meios de promover a libertação de Isaura, procurava com todo o empenho demovê-lo daquele propósito, pintando o negócio ainda mais difícil do que realmente o era. De bom grado, se lhe fosse possível, teria entregado Isaura a seu senhor somente para livrar Álvaro daquela terrível tentação, que o ia precipitando na senda das mais ridículas extravagâncias.
17
Achando-se só, Alvaro sentou-se junto a uma mesa, e apoiando nela os cotovelos com a fronte entre as mãos, ficou a cismar profundamente.
Isaura, porém, pressentindo pelo silêncio que reinava na sala, que já ali não havia pessoas estranhas, foi ter com ele.
— Senhor Álvaro, — disse ela chegando-se de manso e timidamente; — desculpe-me... eu venho decerto lhe aborrecer... queria talvez estar só...
Não, minha Isaura; tu nunca me aborreces; pelo contrário, és sempre bem-vinda junto de mim...
— Mas vejo-o tão triste!... parece-me que aqui entrou mais gente, e alteravam-se vozes. Deram-lhe algum desgosto, meu senhor?...
— Nada houve de extraordinário, Isaura; foram algumas pessoas que vieram procurar o doutor Geraldo.
— Mas então, por que está assim triste e abatido?
— Não estou triste nem abatido. Estava meditando nos meios de arrancar-te do abismo da escravidão, meu anjo, e elevar-te à posição para que o céu te criou.
— Ah! senhor, não se mortifique assim por amor de uma infeliz, que não merece tais extremos, É inútil lutar contra o destino irremediável que me persegue.
— Não fales assim, Isaura. Tens em bem pouca conta a minha proteção e o meu amor!...
— Não sou digna de ouvir de sua boca essa doce palavra. Empregue seu amor em outra mulher que dele seja merecedora, e esqueça-se da pobre cativa, que tornou-se indigna até de sua compaixão ocultando-lhe a sua condição, e fazendo-o passar pelo vergonhoso pesar de...
— Cala-te, Isaura... até quando pretendes lembrar-te desse maldito incidente?... eu somente fui o culpado forçando-te a ir a esse baile, e tinhas razão de sobra para não revelar-me a tua desgraça. Esquece-te disso; eu te peço pelo nosso amor, Isaura.