— É indispensável que eu mesmo vá, — pensou Leôncio, e firme nesta resolução foi ter com o ministro da justiça, com quem cultivava relações de amizade, e pediu-lhe uma carta de recomendação, — o que equivale a uma ordem, — ao chefe de polícia de Pernambuco, para que o auxiliasse eficazmente para o descobrimento e captura de uma escrava. Já de antemão Leôncio também se havia munido de uma precatória e mandado de prisão contra Miguel, a quem havia feito processar e pronunciar como ladrão e acoutador de sua escrava. O sanhudo paxá de nada se esquecia para tornar completa a sua vingança.
No outro dia Leôncio seguia para o Norte no mesmo vapor que conduzia suas cartas.
Estas, porém, chegaram ao seu destino algumas horas antes que o seu autor desembarcasse no Recife.
Leôncio, apenas pôs pé em terra, dirigiu-se ao chefe de policia, e entregando-lhe a carta do ministro inteirou-o de sua pretensão.
Tenho a informar-lhe, senhor Leôncio, — respondeu-lhe o chefe — que haverá talvez pouco mais de duas horas que daqui saiu uma pessoa autorizada por V. S.a para o mesmo fim de apreender essa escrava, e ainda há pouco aqui chegou de volta declarando que tinha-se enganado, e que acabava de reconhecer que a pessoa, de quem desconfiava, não é e nem pode ser a escrava que fugiu a V. S.a.
— Um certo Martinho, não, senhor doutor?...
— Justamente.
— Deveras!... que me diz, senhor doutor?
— A verdade; ainda aí estão à porta o oficial de justiça e os guardas, que o acompanharam.
— De maneira que terei perdido o meu tempo e a minha viagem!... oh! não, não; isto não é possível. Creia-me, senhor doutor, aqui há patranha... o tal senhor Álvaro dizem que é muito rico...
— E o tal Martinho um valdevinos capaz de todas as infâmias. Tudo pode ser; mas a V. S.ª como interessado, compete averiguar essas coisas.
— E é o que venho disposto a fazer. Irei lá eu mesmo verificar o negócio por meus próprios olhos, e já, se for possível.
— Quando quiser. Ali estão o oficial de justiça e os guardas, que ainda agora de lá vieram, e ninguém melhor do que eles pode guiar a V. S.ª e efetuar a captura, caso reconheça ser a sua própria escrava.
— Também me é preciso que V. S.ª ponha o — cumpra-se — nesta precatória — disse Leôncio apresentando a precatória contra Miguel — é necessário punir o patife que teve a audácia de desencaminhar e roubar-me a escrava.
O chefe satisfez sem hesitar ao pedido de Leôncio, que acompanhado da pequena escolta, que fez subir ao seu carro, no mesmo momento se dirigiu à casa de Isaura, onde o deixamos em face de Álvaro.
A situação deste não era só crítica; era desesperada. O seu antagonista ali estava armado de seu incontestável direito para humilhá-lo, esmagá-lo, e o que mais é, despedaçar-lhe a alma, roubando-lhe a amante adorada, o ídolo de seu coração, que ia-lhe ser arrancada dos braços para ser prostituída ao amor brutal de um senhor devasso, se não sacrificada ao seu furor. Não tinha remédio senão curvar-se sem murmurar ao golpe do destino, e ver de braços cruzados metida em ferros, e entregue ao azorrague do algoz a nobre e angélica criatura, que, única entre tantas belezas, lhe fizera palpitar o coração em emoções do mais extremoso e puro amor.
Deplorável contingência, a que somos arrastados em conseqüência de uma instituição absurda e desumana!
O devasso, o libertino, o algoz, apresenta-se altivo e arrogante, tendo a seu favor a lei, e a autoridade, o direito e a força, lança a garra sobre a presa, que é objeto de sua cobiça ou de seu ódio, e pode frui-la ou esmagá-la a seu talante, enquanto o homem de nobre coração, de impulsos generosos, inerme perante a lei, aí fica suplantado, tolhido, manietado sem poder estender o braço em socorro da inocente e nobre vítima, que deseja proteger. Assim, por uma estranha aberração, vemos a lei armando o vício, e decepando os braços à virtude.
Estava pois Álvaro em presença de Leôncio como o condenado em presença do algoz. A mão da fatalidade o socalcava com todo o seu peso esmagador, sem lhe deixar livre o mínimo movimento.
Vinha Leôncio ardendo em fúrias de raiva e de ciúme, e prevalecendo-se de sua vantajosa posição, aproveitou a ocasião para vingar-se de seu rival, não com a nobreza de cavalheiro, mas procurando humilhá-lo à força de impropérios.
— Sei que há muito tempo, — disse Leôncio, continuando o diálogo que deixamos interrompido no capítulo antecedente, — V. S.ª retêm essa escrava em seu poder contra toda a justiça, iludindo as autoridades com falsas alegações, que nunca poderá provar. Porém agora venho eu mesmo reclamá-la e burlar os seus planos, e artifícios.
— Artifícios não, senhor. Protegi e protejo francamente uma escrava contra as violências de um senhor, que quer tornar-se seu algoz; eis aí tudo.
— Ah!... agora é que sei que qualquer aí pode subtrair um escravo ao domínio de seu senhor a pretexto de protegê-lo, e que cada qual tem o direito de velar sobre o modo por que são tratados os escravos alheios.
— V. S.a. está de disposição a escarnecer, e eu declaro-lhe que nenhuma vontade tenho de escarnecer, nem de ser escarnecido. Confesso-lhe que desejo muito a liberdade dessa escrava, tanto quanto desejo a minha felicidade, e estou disposto a fazer todos os sacrifícios possíveis para consegui-la. Já lhe ofereci dinheiro, e ainda ofereço. Dou-lhe o que pedir... dou-lhe uma fortuna por essa escrava. Abra preço...
— Não há dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo, porque não quero vendê-la.
— Mas isso é um capricho bárbaro, uma perversidade...
-Seja capricho da qualidade que V. S.ª quiser; porventura não posso ter eu os meus caprichos, contanto que não ofenda direitos de ninguém?... porventura V. S.ª não tem também o seu capricho de querê-la para si?... mas o seu capricho ofende os meus direitos, e eis aí o que não posso tolerar.
— Mas o meu capricho é nobre e benfazejo, e o seu é uma tirania, para não dizer uma vilania. V. S.ª mancha a sua vida com uma nódoa indelével conservando na escravidão essa mulher; cospe o desrespeito e a injúria sobre o túmulo de sua santa mãe, que criou com tanta delicadeza, educou com tanto esmero essa escrava, para torná-la digna da liberdade que pretendia dar-lhe, e não para satisfazer aos caprichos de V. S.a. Ela por certo lá do céu, onde está, o amaldiçoará, e o mundo inteiro a acompanhará na maldição ao homem que retém no mais infamante cativeiro uma criatura cheia de virtudes, prendas e beleza.
— Basta, senhor!.. agora fico também sabendo, que uma escrava, só pelo fato de ser bonita e prendada, tem direitos à liberdade. Pique também V. S.ª sabendo, que se minha mãe não criou essa rapariga para satisfazer aos meus caprichos, muito menos para satisfazer aos de V. S.ª a quem nunca conheceu nesta vida. Senhor Álvaro, se deseja ter alguma linda escrava para sua amásia procure outra, compre-a, que a respeito desta, pode perder toda a esperança.
— Senhor Leôncio, V. S.ª decerto esquece-se do lugar onde está, e da pessoa com quem fala, e julga que se acha em sua fazenda falando aos seus feitores ou a seus escravos. Advirto-lhe, para que mude de linguagem.