— Basta, senhor; deixemo-nos de vás disputas, e nem eu vim aqui para ser catequizado por V. S.ª. O que quero é a entrega da escrava e nada mais. Não me obrigue a usar do meu direito levando-a à força.
Álvaro, desvairado por tão grosseiras e ferinas provocações, perdeu de todo a prudência e sangue-frio.
Entendeu que para sair-se bem na terrivel conjuntura em que se achava, só havia um caminho, — matar o seu antagonista ou morrer-lhe às mãos, — e cedendo a essas sugestões da cólera e do desespero, saltou da cadeira em que estava, agarrou Leôncio pela gola e sacudindo-o com força:
— Algoz! — bradou espumando de raiva, — ai tens a tua escrava! mas antes de levá-la, hás de responder pelos insultos que me tens dirigido, ouviste?... ou acaso pensas que eu também sou teu escravo?..
— Está louco, homem! — disse Leôncio amedrontado. — As leis do nosso país não permitem o duelo.
— Que me importam as leis!... para o homem de brio a honra é superior às leis, e se não és um covarde, como penso...
Socorro, que querem assassinar-me, — bradou Leôncio desembaraçando-se das mãos de Álvaro, e correndo para a porta.
— Infame! — rugiu Álvaro, cruzando os braços e rangendo os dentes num sorrir de cólera e desdém...
No mesmo momento, atraídos pelo barulho, entravam na sala de um lado Isaura e Miguel, do outro o oficial de justiça e os guardas.
Isaura estava com o ouvido aguçado, e do interior da casa ouvira e compreendera tudo.
Viu que tudo estava perdido, e correu a atalhar o desatino, que por amor dela Álvaro ia cometer.
— Aqui estou, senhor! — foram as únicas palavras que pronunciou apresentando-se de braços cruzados diante de seu senhor.
— Ei-los ai; são estes! — exclamou Leôncio indicando aos guardas Isaura e Miguel. Prendam-os!.. prendam-os!...
Vai-te, Isaura, vai-te, — murmurou Álvaro com voz trêmula e sumida, achegando-se da cativa. — Não desanimes; eu não te abandonarei. Confia em Deus e em meu amor.
Uma hora depois Álvaro recebia em casa a visita de Martinho. Vinha este mui ancho e lampeiro dar conta de sua comissão, e sôfrego por embolsar a soma convencionada.
— Dez contos!... oh! — vinha ele pensando. — uma fortuna! agora sim, posso eu viver independente!... Adeus, surrados bancos de Academia!... adeus, livros sebosos, que tanto tempo andei folheando à toa!... vou atirar-vos pela janela a fora; não preciso mais de vós: meu futuro está feito. Em breve serei capitalista, banqueiro, comendador, barão, e verão para quanto presto!...
E à força de multiplicar cálculos de usura e agiotagem, já Martinho havia centuplicado aquela soma em sua imaginação.
— Meu caro senhor Álvaro, — veio logo dizendo sem mais preâmbulos, — está tudo arranjado à medida de nossos desejos. Pode V. S.ª viver tranqüilo em companhia da gentil fugitiva, que daqui em diante ninguém mais o importunará. De feito o procedimento de V. S.ª nesta questão tem sido muito belo e digno de elogios; é próprio de um coração grande e generoso como o de V. S.ª. Não se dá maiar desaforo! no cativeiro uma menina tão mimosa e tão prendada!... Agora aqui está a carta, que escrevo ao lorpa do sultãozinho. Prego-lhe meia dúzia de carapetões, que o hão de desorientar completamente.
Assim falando, Martinho desdobrou a carta, e já começava a lê-la, quando Álvaro impacientado o interrompeu.
— Basta, senhor Martinho, — disse-lhe com mau humor; — o negócio está arranjado; não preciso mais de seus serviços.
Arranjado!... como?...
— A escrava está em poder de seu senhor.
— De Leôncio!... impossível!
— Entretanto, é a pura verdade; se quiser saber mais vá à polícia, e indague.
— E os meus dez contos?...
— Creio que não lhos devo mais.
Martinho soltou um urro de desespero, e saiu da casa de Álvaro com tal precipitação, que parecia ir rolando pelas escadas abaixo.
Descrever o mísero estado em que ficou aquela pobre alma, é empresa em que não me meto; os leitores que façam idéia.
O cão faminto, iludido pela sombra, largou a carne que tinha entre os dentes, e ficou sem uma nem outra.
19
— Olha como arranjas isso, Rosa; esta rapariga é mesmo uma estouvada; não tem jeito para nada. Bem mostras que não nasceste para a sala; o teu lugar é na cozinha.
— Ora vejam lá a figura de quem quer me dar regras!... quem te chamou aqui, intrometido? O teu lugar também não é aqui, é lá na estrebaria. Vai lá governar os teus cavalos, André, e não te intrometas no que não te importa.
— Cala-te dai, toleirona; — replicou André mudando de lugar algumas cadeiras. — O que sabes é só tagarelar. Não é aqui o lugar destas cadeiras... Olha como estão estes jarros!... ainda nem alimpaste os espelhos!... forte desajeitada e preguiçosa que és!... No tempo de Isaura andava tudo isto aqui que era um mimo; fazia gosto entrar-se nesta sala. Agora, é isto. Está claro que não és para estas coisas.
— Essa agora é bem lembrada! — retorquiu Rosa, altamente despeitada. — Se tens saudades do tempo de Isaura, vai lá tirá-la do quarto escuro do tronco, onde ela está morando. Esse decerto ela não há de ter gosto para enfeitá-lo de flores.
— Cala a boca, Rosa; olha que tu também lá podes ir parar.
— Eu não, que não sou fujona.
— Por que não achas quem te carregue, se não fugirias até com o diabo. Coitada da Isaura! uma rapariga tão boa e tão mimosa, tratada como uma negra da cozinha! e não tens pena dela, Rosa?
— Pena por que, agora?... quem mandou ela fazer das suas?
— Pois olha, Rosa, eu estava pronto a agüentar a metade do castigo que ela está sofrendo, mas na companhia dela, está entendido.
— Isso pouco custa, André; é fazer o que ela fez. Vai, como ela, tomar ares em Pernambuco, que infalivelmente vais para a companhia de Isaura.
— Quem dera!... se soubesse que me prendiam com ela, isso é que era um fugir. Mas o diabo é que a pobre Isaura agora vai deixar a nós todos para sempre. Que falta não vai fazer nesta casa!...
— Deixar como?
— Você verá.
— Foi vendida?...
— Qual vendida!
— Alheada?
— Nem isso
— Está forra?...
— Que abelhuda!... Espera, Rosa; tem paciência um pouco, que hoje mesmo talvez você venha a saber tudo.
— Ora ponha-se com mistérios... então o que você sabe os outros não podem saber?...
— Não é mistério, Rosa; é desconfiança minha. Aqui em casa não tarda a haver novidade grossa; vai escutando.
— Ah! ah! — respondeu Rosa galhofando. — Você mesmo está com cara de novidade.
— Psiu!... bico calado, Rosa!... ai vem nhonhô.
Pelo diálogo acima o leitor bem vê, que nos achamos de novo na fazenda de Leôncio, no município de Campos, e na mesma sala, em que no começo desta história encontramos Isaura entoando sua canção favorita.
Cerca de dois meses são decorridos depois que Leôncio fora ao Recife apreender sua escrava. Leôncio e Malvina tinham-se reconciliado, e vindos da corte tinham chegado à fazenda na véspera. Alguns escravos, entre os quais se acham Rosa e André, estão asseando o soalho, arranjando e espanando os móveis daquele rico salão, testemunha impassível dos mistérios da família, de tantas cenas ora tocantes e enlevadoras, ora vergonhosas e sinistras, e que durante a ausência de Malvina se conservara sempre fechado.
Qual é, porém, a sorte de Isaura e de Miguel, desde que deixaram Pernambuco? que destino deu Leôncio ou pretende dar àquela?... por que maneira se reconciliou com sua mulher?
Eis o que passamos a explicar ao leitor, antes de prosseguirmos nesta narrativa.
Leôncio, tendo trazido Isaura para sua fazenda, a conservara na mais completa e rigorosa reclusão. Não era isto só com o fim de castigá-la ou de cevar sua feroz vingança sobre a infeliz cativa. Sabia quanto era ardente e capaz de extremos o amor que o jovem pernambucano concebera por Isaura; tinha ouvido as últimas palavras que Álvaro lhe dirigia — confia em Deus, e em meu amor; eu não te abandonarei. — Era uma ameaça, e Álvaro, rico e audacioso como era, dispunha de grandes meios para pó-la em execução, quer por alguma violência, quer por meio de astúcias e insídias. Leôncio, portanto, não só encarcerava com todo o rigor a sua escrava, como também armou todos os seus escravos, que daí em diante distraídos quase completamente dos trabalhos da lavoura, viviam em alerta dia e noite como soldados de guarnição a uma fortaleza.