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— Senhor Miguel, — disse-lhe em tom formalizado, — tenho comiseração do senhor e de sua filha, apesar dos incômodos e prejuízos que me têm dado, e venho propor-lhe um meio de acabarmos de uma vez para sempre com as desordens, intrigas e transtornos com que sua filha tem perturbado minha casa e o sossego de minha vida.

— Estou pronto para qualquer arranjo, senhor Leóncio, — respondeu respeitosamente Miguel, — uma vez que seja justo e honesto.

— Nada mais honesto, nem mais justo. Quero casar sua filha com um homem de bem, e dar-lhe a liberdade; porém para esse fim preciso muito de sua coadjuvação.

— Pois diga em que lhe posso servir.

— Sei que Isaura há de sentir alguma repugnância em casar-se com a pessoa que lhe destino, em razão de tola e extravagante paixão, que parece ainda ter por aquele infame peralvilho de Pernambuco, que meteu-lhe mil caraminholas na cabeça, e encheu-a de idéias extravagantes e loucas esperanças.

— Creio que ela não deve lembrar-se desse moço senão por grati— dão...

— Qual gratidão!... pensa vossemecê que ele está fazendo muito caso dela?... tanto como do primeiro sapato que calçou. Aquilo foi um capricho de cabeça estonteada, uma fantasia de fidalgote endinheirado, e a prova aqui está; leia esta carta... O patife tem a sem-cerimônia de escrever-me, como se entre nós nada houvesse, assim com ares de amigo velho, participando-me que se acha casado!... que tal lhe parece esta?... que tenho eu com seu casamento!... Mas isto ainda não é tudo; aproveitando a ocasião, pede-me com todo o desfaçamento que em todo e qualquer tempo, que eu me resolva a dispor de Isaura, nunca o faça sem participar-lhe, porque muito deseja tê-la para mucama de sua senhora! até onde pode chegar o cinismo e a impudência!...

— Com efeito, senhor!... isto da parte do senhor Álvaro é custoso de acreditar!

— Pois capacite-se com seus próprios olhos; leia; não conhece esta letra?...

E dizendo isto Leôncio apresentou a Miguel uma carta, cuja letra imitava perfeitamente a de Álvaro.

— A letra é dele; não resta dúvida, — disse Miguel pasmado do que acabava de ler. — Há neste mundo infâmias que custa-se a compreender.

— E também lições cruéis, que é preciso não desprezar, não é assim, senhor Miguel?... Pois bem; guarde essa carta para mostrar à sua filha; é bom que ela saiba de tudo para não contar mais com esse homem, e varrer do espírito as fumaças que porventura ainda lhe toldam o juízo. Faça também vossemecê o que estiver em seu possível a fim de predispor sua filha para esse casamento, que é de muita vantagem, e eu não só lhe perdoarei tudo quanto me fica devendo, como lhe restituo o que já me deu, para vossemecê abrir um negócio aqui em Campos e viver tranqüilamente o resto de seus dias, em companhia de sua filha e de seu genro.

— Mas quem é esse genro? V. S.ª me não disse ainda.

— É verdade... esquecia-me. É o Belchior, o meu jardineiro; não conhece?...

— Muito!... oh! senhor!... com que miserável figura quer casar minha filha!... pobre Isaura!... duvido muito que ela queira.

— Que importa a figura, se tem uma boa alma, e é honesto e trabalhador?... Lá isso é verdade; o ponto é ela querer.

— Estou certo que aconselhada e bem catequizada por vossemece há de se resolver.

— Farei o que puder; mas tenho poucas esperanças.

— E se não quiser, pior para ela e para vossemecê: o dito por não dito; fica tudo como estava, — disse terminantemente Leôncio.

Miguel não era homem de têmpera a lutar contra a adversidade. O cativeiro e reclusão perene de sua filha, a miséria que se lhe antolhava acompanhada de mil angústias, eram para ele fantasmas hediondos, cujo aspecto não podia encarar sem sentir mortal pavor e abatimento. Não achou muito oneroso o preço pelo qual o desumano senhor, livrando-o da miséria, concedia liberdade à sua filha, e aceitou o convênio.

20

Enquanto Rosa e André espanejavam os móveis do salão, tagarelando alegremente, uma cena bem triste e compungente se passava em um escuro aposento atinente às senzalas, onde Isaura sentada sobre um cepo, com um dos alvos e mimosos artelhos preso por uma corrente cravada à parede, há dois meses se achava encarcerada.

Miguel ai tinha sido introduzido por ordem de Leôncio, para dar parte à filha do projeto de seu senhor, e exortá-la a aceitar o partido que lhes propunha. Era pungente e desolador o quadro que apresentavam aquelas duas míseras criaturas, pálidas, extenuadas e abatidas pelo infortúnio, encerrados em uma estreita e lôbrega espelunca. Ao se encontrarem depois de dois longos meses, mais oprimidos e desgraçados que nunca, a primeira linguagem com que se saudaram não foi mais do que um coro de lágrimas e soluços de indizível angústia, que abraçados por largo tempo estiveram entornando no seio um do outro.

— Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício, que é desgraçadamente o único recurso que nos deixam. É com esta condição que venho abrir-te as portas desta triste prisão, em que há dois meses vives encerrada. É, sem dúvida, um cruel sacrifício para teu coração; mas é sem comparação mais suportável do que esse duro cativeiro, com que pretendem matar-te.

— É verdade, meu pai; o meu carrasco dá-me a escolha entre dois jugos; mas eu ainda não sei qual dos dois será mais odioso e insuportável. Eu sou linda, dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspiraram-me uma alta estima de mim mesma com o sentimento do pudor e da dignidade da mulher; sou uma escrava, que faz muita moça formosa morder-se de inveja; tenho dotes incomparáveis do corpo e do espírito; e tudo isto para quê, meu Deus!?... para ser dada de mimo a um mísero idiota!... Pode-se dar mais cruel e pungente escárnio?!...

E uma risada convulsiva e sinistra desprendeu-se dos lábios descorados de Isaura, e reboou pelo lúgubre aposento, como o estrídulo ulular do mocho entre os sepulcros.

— Não é tanto como se te afigura na imaginação abalada pelos sofrimentos. O tempo pode muito, e com paciência e resignação hás de te acostumar a esse novo viver, sem dúvida muito mais suave do que este inferno de martírios, e poderemos ainda gozar dias se não felizes, ao menos mais tranqüilos e serenos.

— Para mim a tranqüilidade não pode existir senão na sepultura, meu pai. Entre os dois suplícios que me deixam escolher, eu vejo ainda alguma coisa, que me sorri como uma idéia consoladora, um recurso extremo, que Deus reserva para os desgraçados, cujos males são sem remédio.

— É da resignação sem dúvida, que queres falar, não é, minha filha?... Ah! meu pai, quando a resignação não é possível, só a morte...

— Cala-te, filha!... não digas blasfêmias e palavras loucas. Eu quero, eu preciso, que tu vivas. Terás ânimo de deixar teu pai neste mundo sozinho, velho e entregue à miséria e ao desamparo? Se me faltares, o que será de mim nas tristes conjunturas em que me deixas?...

— Perdoe-me, meu bom, meu querido pai; só em um caso extremo eu me lembraria de morrer. Eu sei que devo viver para meu pai, e é isso que eu quero; mas para isso será preciso que eu me case com um disforme?... oh! isto é escárnio e opróbrio demais! Tenham-me debaixo do mais rigoroso cativeiro, ponham-me na roça de enxada na mão, descalça e vestida de algodão, castiguem-me, tratem-me enfim como a mais vil das escravas, mas por caridade poupem-me este ignominioso sacrifício!...

— Belchior não é tão disforme como te parece; e demais o tempo e o costume te farão familiarizar com ele. Há muito tempo não o vês; com a idade ele vai-se endireitando, que é ele ainda muito criança. Agora o desconhecerás; já não tem aquele exterior tão grosseiro e desagradável, e tem tomado outras maneiras menos toscas. Toma ânimo, minha filha; quando saíres deste triste calabouço, o ar da liberdade te restituirá a alegria e a tranqüilidade, e mesmo com o marido que te dão poderás viver feliz...