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E também libertá-la para quê? Ela aqui é livre, mais livre do que eu mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem forças para gozar da liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e se ela transviar-se por aí, e nunca mais acertar com a porta da gaiola?... Não, não, minha filha; enquanto eu for viva, quero tê-la sempre bem pertinho de mim, quero que seja minha, e minha só. Você há de estar dizendo lá consigo — forte egoísmo de velha! — mas também eu já poucos dias terei de vida; o sacrifício não será grande. Por minha morte ficará livre, e eu terei o cuidado de deixar-lhe um bom legado.

De feito, a boa velha tentou por diversas vezes escrever seu testamento a fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida pupila; mas o comendador, auxiliado por seu filho com delongas e fúteis pretextos, conseguia ir sempre adiando a satisfação do louvável e santo desejo de sua esposa, até o dia em que, fulminada por um ataque de paralisia geral, ela sucumbiu em poucas horas sem ter tido um só momento de lucidez e reanimação para expressar sua última vontade.

Malvina jurou sobre o cadáver de sua sogra continuar para com a infeliz escrava a mesma proteção e solicitude que a defunta lhe havia prodigalizado. Isaura pranteou por muito tempo a morte daquela que havia sido para ela mãe desvelada e carinhosa; e continuou a ser escrava não já de uma boa e virtuosa senhora, mas de senhores caprichosos, devassos e cruéis.

3

Falta-nos ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado de Leôncio. Era ele um elegante e bonito rapaz de vinte anos, frívolo, estouvado e vaidoso, como são quase sempre todos os jovens, mormente quando lhes coube a ventura de terem nascido de um pai rico. Não obstante esses ligeiros senões, tinha bom coração e bastante dignidade e nobreza de alma. Era estudante de medicina, e como estava-se em férias, Leôncio o convidara a vir visitar a irmã e passar alguns dias em sua fazenda.

Os dois mancebos chegavam de Campos, onde Leôncio desde a véspera linha ido ao encontro do cunhado.

Só depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves estadas fizera na casa paterna, começou a prestar atenção à extrema beleza e às graças incomparáveis de Isaura. Posto que lhe coubesse em sorte uma linda e excelente mulher, ele não se havia casado por amor, sentimento esse a que seu coração até ali parecia absolutamente estranho. Casara-se por especulação, e como sua mulher era moça e bonita, sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo dos prazeres sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à infeliz Isaura fazer vibrar profunda e violentamente naquele coração as fibras que ainda não estavam de todo estragadas pelo atrito da devassidão. Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia crescendo na razão direta dos sérios e poderosos obstáculos que encontrava, obstáculos a que não estava afeito, e que em vão se esforçava para superar. Mas nem por isso desistia de sua tresloucada empresa, porque em fim de contas, — pensava ele, — Isaura era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse eficaz, restava-lhe o emprego da violência. Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal devassidão do comendador.

Pelo caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem de Isaura, Leôncio conversara longamente com seu cunhado a respeito dela, exaltando-lhe a beleza, e deixando transluzir com revoltante cinismo as lascivas intenções que abrigava no coração. Esta conversação não agradava muito a Henrique, que às vezes corava de pejo e de indignação por sua irmã, mas não deixou de excitar-lhe viva curiosidade de conhecer uma escrava de tão extraordinária beleza.

No dia seguinte ao da chegada dos mancebos às oito horas da manhã, Isaura, que acabava de espanejar os móveis e arranjar o salão, achava-se sentada junto a uma janela e entrelinha-se a bordar, à espera que seus senhores se levantassem para servir-lhes o café. Leôncio e Henrique não tardaram em aparecer, e parando à porta do salão puseram-se a contemplar Isaura, que sem se aperceber da presença deles continuava a bordar distraidamente.

— Então, que te parece? segredava Leôncio a seu cunhado. — Uma escrava desta ordem não é um tesouro inapreciável? Quem não diria que uma andaluza de Cádiz, ou uma napolitana?...

— Não é nada disso; mas é coisa melhor, respondeu Henrique maravilhado; é uma perfeita brasileira.

— Qual brasileira! é superior a tudo quanto há. Aqueles encantos e aquelas dezessete primaveras em uma moça livre, teriam feito virar o juízo a muita gente boa. Tua irmã pretende com instância, que eu a liberte, alegando que essa era a vontade de minha defunta mãe; mas nem tão tolo sou eu, que me desfaça assim sem mais nem menos de uma jóia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho de criá-la com todo o mimo e de dar-lhe uma primorosa educação, não foi decerto para abandoná-la ao mundo, não achas?... Também meu pai parece que cedeu às instâncias do pai dela, que é um pobre galego, que por ai anda, e que pretende libertá-la; mas o velho pede por ela tão exorbitante soma, que julgo nada dever recear por esse lado. Vê lá, Henrique, se há nada que pague uma escrava assim?...

— É com efeito encantadora — replicou o moço, — se estivesse no serralho do sultão, seria sua odalisca favorita. Mas devo notar-te, Leôncio, — continuou, cravando no cunhado um olhar cheio de maliciosa penetração, — como teu amigo e como irmão de tua mulher, que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma escrava tão linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente e talvez perigoso para a tranqüilidade doméstica...

— Bravo! — atalhou Leôncio, galhofando, — para a idade que tens, já estás um moralista de polpa!... mas não te dê isso cuidado, meu menino; tua irmã não tem dessas veleidades, e é ela mesma quem mais gosta de que Isaura seja vista e admirada por todos. E tem razão; Isaura é como um traste de luxo, que deve estar sempre exposto no salão. Querias que eu mandasse para a cozinha os meus espelhos de Veneza?...

Malvina, que vinha do interior da casa, risonha, fresca e alegre como uma manhã de abril, veio interromper-lhes a conversação.

— Bom dia, senhores preguiçosos! — disse ela com voz argentina e festiva como o trino da andorinha. — Até que enfim sempre se levantaram!

— Estás hoje muito alegre, minha querida, — retorquiu-lhe sor— rindo o marido; — viste algum passarinho verde de bico dourado?...

— Não vi, mas hei de ver; estou alegre mesmo, e quero que hoje aqui em casa seja um dia de festa para todos. Isto depende de ti, Leôncio, e estava aflita por te ver de pé; quero dizer-te uma coisa; já devia tê-la dito ontem, mas o prazer de ver este ingrato de irmão, que há tanto tempo não vejo, me fez esquecer...

— Mas o que é?... fala, Malvina.

— Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes, promessa sagrada, que há muito tempo devia ter sido cumprida?... hoje quero absolutamente, exijo, o seu cumprimento.

— Deveras?.., mas que promessa?... não me lembro.

— Ah! como te fazes de esquecido!... não te lembras, que me prometeste dar liberdade a...

— Ah! já sei, já sei; — atalhou Leôncio com impaciência. — Mas tratar disso aqui agora? em presença dela?... que necessidade há de que nos ouça?

— E que mal faz isso? mas seja como quiseres, — replicou a moça tomando a mão de Leôncio e levando-o para o interior da casa; — vamos cá para dentro. Henrique, espera aí um momento, enquanto eu vou mandar preparar-nos o café.

Só depois da chegada de Malvina, Isaura deu pela presença dos dois mancebos, que a certa distância a contemplavam cochichando a respeito dela. Também pouco ouviu ela e nada compreendeu do rápido diálogo que tivera lugar entre Malvina e seu marido. Apenas estes se retiraram ela também se levantou e ia sair, mas Henrique, que ficara só, a deteve com um gesto.