— Sozinha?!... pois até aqui não vivias sem mim na companhia de teu belo marido?...
— Não me fales nesse homem... eu andava iludida; agora vejo que andava pior do que sozinha, na companhia de um perverso.
— Ainda bem que presenciaste com teus próprios olhos o que eu não tinha ânimo de dizer-te. Mas, vamos! que pretendes fazer?...
— O que pretendo?... vais ver neste mesmo instante... Onde está ele?... viste-o por ai?...
Se me não engano, vi-o no salão; havia lá um vulto sobre um sofá.
— Pois bem, Henrique, acompanha-me até lá.
Por que razão não vais só? poupa-me o desgosto de encarar aquele homem...
— Não, não; é preciso que vás comigo; estava à tua espera mesmo para esse fim. Preciso de uma pessoa que me ampare e me alente. Agora até tenho medo dele.
— Ah! compreendo; queres que eu seja teu guarda-costas, para poderes descompor a teu jeito aquele birbante. Pois bem; presto-me de boa vontade, e veremos se o patife tem o atrevimento de te desrespeitar. Vamos!
6
— Senhor Leôncio, — disse Malvina com voz alterada aproximando-se do sofá, em que se achava o marido, — desejo dizer-lhe duas palavras, se isso não o incomoda.
— Estou sempre às tuas ordens, querida Malvina, — respondeu levantando-se lesto e risonho, e como quem nenhum reparo fizera no tom cerimonioso com que Malvina o tratava. — Que me queres?...
— Quero dizer-lhe, — exclamou a moça em tom severo, e fazendo vãos esforços para dar ao seu lindo e mavioso semblante um ar feroz, — quero dizer-lhe que o senhor me insulta e me atraiçoa em sua casa, da maneira a mais indigna e desleal...
— Santo Deus!... que estás aí a dizer, minha querida?... explica-te melhor, que não compreendo nem uma palavra do que dizes...
— Debalde, que o senhor se finge surpreendido; bem sabe a causa do meu desgosto. Eu já devia ter pressentido esse seu vergonhoso procedimento; há muito que o senhor não é o mesmo para comigo, e me trata com tal frieza e indiferença...
— Oh! meu coração, pois querias que durasse eternamente a lua-de-mel?... isso seria horrivelmente monótono e prosaico.
— Ainda escarneces, infame! — bradou a moça, e desta vez as faces se lhe afoguearam de extraordinário rubor, e fuzilaram-lhe nos olhos lampejos de cólera terrível.
— Oh! não te exasperes assim, Malvina; estou gracejando — disse Leôncio procurando tomar-lhe a mão.
— Boa ocasião para gracejos!... deixe-me, senhor!... que infâmia!... que vergonha para nós ambos!...
— Mas enfim não te explicarás?
— Não tenho que explicar; o senhor bem me entende. Só tenho que exigir...
— Pois exige, Malvina.
— Dê um destino qualquer a essa escrava, a cujos pés o senhor costuma vilmente prostrar-se: liberte-a, venda-a, faça o que quiser. Ou eu ou ela havemos de abandonar para sempre esta casa; e isto hoje mesmo. Escolha entre nos.
— Hoje?!
— E já!
— És muito exigente e injusta para comigo, Malvina, — disse Leôncio depois de um momento de pasmo e hesitação. — Bem sabes que é meu desejo libertar Isaura; mas acaso depende isso de mim somente? é a meu pai que compete fazer o que de mim exiges.
— Que miserável desculpa, senhor! seu pai já lhe entregou escravos e fazenda, e dará por bem feito tudo quanto o senhor fizer. Mas se acaso o senhor a prefere a mim...
— Malvina!... não digas tal blasfêmia!...
— Blasfêmia!... quem sabe!... mas enfim dê um destino qualquer a essa rapariga, se não quer expelir-me para sempre de sua casa. Quanto a mim, não a quero mais nem um momento em meu serviço; é bonita demais para mucama.
— O que lhe dizia eu, senhor Leôncio? acudiu Henrique, que já cansado e envergonhado do papel de mudo guarda-costas, entendeu que devia intervir também na querela. — Está vendo?.. eis aí o fruto que se colhe desses belos trastes de luxo, que quer por força ter em seu salão...
— Esses trastes não seriam tão perigosos, se não existissem vis mexeriqueiros, que não hesitam em perturbar o sossego da casa dos outros para conseguir seus fins perversos...
— Alto lá, senhor!... para impedir que o senhor não transportasse o seu traste de luxo do salão para a alcova, percebe?... o escândalo cedo ou tarde seria notório, e nenhum dever tenho eu de ver de braços cruzados minha irmã indignamente ultrajada.
— Senhor Henrique! bradou Leôncio avançando para ele, hirto de cólera e com gesto ameaçador.
— Basta, senhores — gritou Malvina interpondo-se aos dois mancebos. — Toda a disputa por tal motivo é inútil e vergonhosa para nós todos. Eu já disse a Leôncio o que tinha de dizer; ele que se decida; faça o que entender. Se quiser ser homem de brio e pundonor, ainda é tempo. Se não, deixe-me, que eu o entregarei ao desprezo que merece.
— Oh! Malvina! estou pronto a fazer todo o possível para te tranqüilizar e contentar: mas deves saber que não posso satisfazer o teu desejo sem primeiro entender-me com meu pai, que está na corte. É preciso mais que saibas, que meu pai nenhuma vontade tem de libertar Isaura, tanto assim, que para se ver livre das importunações do pai dela, que também quer a todo custo libertá-la, exigiu uma soma por tal forma exorbitante, que é quase impossível o pobre homem arranjá-la.
— O de casa!... dá licença? — bradou neste momento com voz forte e sonora uma pessoa, que vinha subindo a escada do alpendre.
— Quem quer que é, pode entrar, — gritou Leôncio dando graças ao céu, que tão a propósito mandava-lhe uma visita para interromper aquela importuna e detestável questão e livrá-lo dos apuros em que se via entalado.
Entretanto, como se verá, não tinha muito de que congratular-se. O visitante era Miguel, o antigo feitor da fazenda, o pai de Isaura, que havia sido outrora grosseiramente despedido pelo pai de Leôncio.
Este, que ainda o não conhecia, recebeu-o com afabilidade.
— Queira sentar-se, — disse-lhe, — e dizer-nos o motivo por que nos faz a honra de procurar,
— Obrigado! — disse o recém-chegado, depois de cumprimentar respeitosamente Henrique e Malvina. — V. S.a sem dúvida é o senhor Leôncio?...
— Para o servir.
— Muito bem!... é com V. S.ª que tenho de tratar na falta do senhor seu pai. O meu negócio é simples, e julgo que o posso declarar em presença aqui do senhor e da senhora, que me parecem ser pessoas de casa.
— Sem dúvida! entre nós não há segredo, nem reservas.
— Eis aqui ao que vim, senhor meu, — disse Miguel, tirando da algibeira de seu largo sobretudo uma carteira, que apresentou a Leôncio; — faça o favor de abrir esta carteira; aqui encontrará V. S.ª a quantia exigida pelo senhor seu pai, para a liberdade de uma escrava desta casa por nome Isaura.
Leôncio enfiou, e tomando maquinalmente a carteira, ficou alguns instantes com os olhos pregados no teto.
— Pelo que vejo, — disse por fim, — o senhor deve ser o pai... aquele que dizem ser o pai da dita escrava. — é o senhor. — não me lembra o nome..
— Miguel, um criado de V. S.a
— É verdade; o senhor Miguel. Folgo muito que tenha arranjado meios de libertar a menina; ela bem merece esse sacrifício.
Enquanto Leôncio abre a carteira, e conta e reconta mui pausadamente nota por nota o dinheiro, mais para ganhar tempo a refletir sobre o que deveria fazer naquelas conjunturas, do que para verificar se estava exata a soma, aproveitemo-nos do ensejo para contemplar a figura do bom e honrado português, pai da nossa heroína, de quem ainda não nos ocupamos senão de passagem.
Era um homem de mais de cinqüenta anos; em sua fisionomia nobre e alerta transpirava a franqueza, a bonomia, e a lealdade.
Trajava pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas maneiras e conversação, conhecia-se que aquele homem não viera ao Brasil, como quase todos os seus patrícios, dominado pela ganância de riquezas. Tinha o trato e a linguagem de um homem polido, e de acurada educação. De feito Miguel era filho de uma nobre e honrada família de miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus pais, vítimas de perseguições políticas, morreram sem ter nada que legar ao filho, que deixaram na idade de dezoito a vinte anos. Sozinho, sem meios e sem proteção, viu-se forçado a viver do trabalho de seus braços, metendo-se a jardineiro e horticultor, mister este, que como filho de lavrador, robusto, ativo e inteligente, desempenhava com suma perícia e perfeição.