Выбрать главу

Cormac McCarthy

A ESTRADA

Tradução Adriana Lisboa

© 2006, Cormac McCarthy

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Objetiva Ltda.

Rua Cosme Velho, 103

Rio de Janeiro — RJ — Cep: 22241-090

Tel.: (21) 2199-7824 — Fax: (21) 2199-7825

www.objetiva.com.br

Título original The Road

Capa

Pimenta Design, a partir de pôster original do filme A estrada, cedido por Paris Filmes Revisão

Ana Kronemberger

Marcelo Magalhães

Raquel Crillo

Editoração eletrônica Abreus System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

Ml 15e

McCarthy, Cormac

A estrada / Cormac McCarthy ; tradução de Adriana Lisboa. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2007.

234 p. ISBN 978-85-60281 -26-8

Tradução de :

The Road

1. Pais e filhos - Ficção. 2. Ficção americana. I. Lisboa, Adriana. II. Título.

07-2756. CDD: 813

CDU: 821.111 (73)-3

Revisado e digitalizado por Shadow Man em 2013.

Quando ele acordava na floresta no escuro e no frio da noite, estendia o braço para tocar a criança adormecida ao seu lado. Noites escuras para além da escuridão e cada um dos dias mais cinzento do que o anterior. Como o início de um glaucoma frio que apagava progressivamente o mundo. Sua mão subia e descia de leve com cada preciosa respiração. Removeu a lona de plástico e se levantou em meio às roupas e cobertas fedorentas e olhou para o leste em busca de alguma luz, mas não havia nenhuma. No sonho do qual acordara ele andava a esmo numa caverna onde a criança o levava pela mão. A luz deles brincando sobre as paredes úmidas de rocha calcária. Como peregrinos numa fábula engolidos e perdidos nas entranhas de alguma besta de granito. Buracos profundos na pedra onde a água gotejava e cantava. Contando no silêncio os minutos da terra e suas horas e dias e os anos sem cessar. Até eles se encontrarem num grande salão de pedra onde havia um lago negro e antigo. E na outra margem uma criatura que erguia sua boca gotejante do poço de pedra calcária e fitava a luz com olhos brancos e mortiços, cegos como os olhos das aranhas. Esticou a cabeça sobre a água como se tentasse sentir o cheiro daquilo que não podia ver. Agachada ali pálida e nua e translúcida, seus ossos de alabastro projetados em sombras nas rochas atrás dela. Seus intestinos, seu coração palpitante. O cérebro que pulsava num sino de vidro fosco. Balançava a cabeça para um lado e para o outro, depois soltou um gemido baixo e se virou e se afastou com uma guinada e correu sem fazer barulho para dentro da escuridão.

Com a primeira luz cinzenta ele se levantou e deixou o menino dormindo e caminhou até a estrada e se agachou e estudou a região que ficava ao sul. Árida, silenciosa, sem deus. Ele achava que o mês era outubro, mas não tinha certeza. Fazia anos que não tinha um calendário. Estavam seguindo para o sul. Não haveria como sobreviver a mais um inverno ali.

Quando havia luz suficiente para usar o binóculo ele observou o vale lá embaixo. Tudo empalidecendo na névoa. As cinzas macias voando em espirais vagas sobre o asfalto. Ele examinava o que conseguia ver. Os pedaços da estrada lá embaixo em meio a árvores mortas. Procurando alguma cor. Algum movimento. Algum traço de fumaça subindo no ar. Abaixou o binóculo e puxou para baixo a máscara de algodão que estava sobre seu rosto, limpou o nariz nas costas do punho e em seguida percorreu a região com o binóculo novamente. Depois apenas ficou sentado ali segurando o binóculo e observando a luz cinzenta do dia se solidificar sobre a terra. Sabia apenas que a criança era sua garantia. Disse: Se ele não é a palavra de Deus, Deus nunca falou.

Quando voltou o menino ainda estava adormecido. Puxou a lona de plástico azul de cima dele, dobrou-a e a carregou até o carrinho de supermercado, guardou-a e voltou com seus pratos e alguns bolos de fubá numa bolsa de plástico e uma garrafa plástica com xarope. Estendeu no chão a pequena lona que usavam como mesa e dispôs tudo e tirou o revólver do cinto e o colocou sobre o pano e depois ficou apenas sentado observando o menino dormir. Ele havia arrancado a máscara durante a noite e estava enterrado em algum lugar debaixo dos cobertores. Ele observava o menino e olhava para a estrada lá adiante através das árvores. Aquele não era um lugar seguro. Podiam ser vistos da estrada agora que era dia. O menino se virou nos cobertores. Depois abriu os olhos. Oi, Papai, ele disse.

Estou bem aqui.

Eu sei.

Uma hora mais tarde estavam na estrada. Ele empurrava o carrinho e tanto ele quanto o menino carregavam mochilas. Nas mochilas estavam coisas essenciais. Caso tivessem que abandonar o carrinho e correr para salvar suas vidas. Preso à barra do carrinho de supermercado havia um espelho retrovisor para motocicleta que ele usava para observar a estrada atrás deles. Ajeitou a mochila mais alto sobre o ombro e olhou para o terreno árido adiante. A estrada estava vazia. Lá embaixo no pequeno vale a serpentina imóvel e cinzenta de um rio. Parada e precisa. Ao longo da margem um feixe de juncos mortos. Você está bem? ele disse. O menino fez que sim. Então partiram sobre o asfalto sob a luz cinza-chumbo, caminhando vagarosamente por entre as cinzas, cada um o mundo inteiro do outro.

Atravessaram o rio por uma velha ponte de concreto e alguns quilômetros depois chegaram a um posto de gasolina de beira de estrada. Ficaram parados na estrada e o examinaram. Acho que devíamos ir ver, o homem disse. Dar uma olhada. O mato que eles atravessavam virava pó ao seu redor. Cruzaram o trecho rachado de asfalto e encontraram o tanque das bombas. A tampa tinha sumido e o homem deitou apoiado nos cotovelos para cheirar o cano, mas o odor de gasolina não passava de um rumor, fraco e velho. Ele se levantou e olhou para a construção. As bombas ali com as mangueiras estranhamente ainda no lugar. As janelas intactas. A porta para a oficina estava aberta e ele entrou. Uma caixa de ferramentas de metal de pé junto a uma das paredes. Vasculhou as gavetas mas não havia nada ali que pudesse usar. Chaves de boca de meia polegada em boas condições. Uma chave de catraca. Ficou olhando ao redor para a garagem. Um barril de metal cheio de lixo. Foi até o escritório. Poeira e cinzas em toda parte. O menino estava parado na porta. Uma mesa de metal, uma caixa registradora. Alguns velhos manuais automotivos, inchados e empapados. O linóleo estava manchado e ondulado por causa dos vazamentos do teto. Ele foi até a mesa e parou ali. Então pegou o telefone e ligou para o número que era da casa de seu pai tanto tempo atrás. O menino o observava. O que você está fazendo? ele disse.

Cerca de meio quilômetro adiante na estrada ele parou e olhou para trás. Não estamos pensando, falou. Temos que voltar. Ele empurrou o carrinho para fora da estrada e inclinou-o num local onde não poderia ser visto e deixaram suas mochilas e voltaram ao posto de gasolina. Na oficina ele arrastou para fora o barril com o lixo e virou-o de cabeça para baixo e tirou todas as garrafas de óleo de um litro. Em seguida sentaram-se no chão para decantar os resíduos de uma por uma, deixando as garrafas de cabeça para baixo escorrendo dentro de um recipiente até conseguirem quase meio litro de óleo de motor. Ele desatarraxou a tampa de plástico e enxugou a garrafa com um trapo e sentiu seu peso na mão. Óleo para que a pequena lamparina deles pudesse iluminar os longos entardeceres cinzentos, as longas auroras cinzentas. Você pode ler uma história para mim, o menino disse. Não pode, Papai? Sim, ele disse. Posso.