Выбрать главу

Ele achava que alguma coisa devia ter passado despercebida, mas não. Vasculharam com os pés o lixo nos corredores de um mercado. Velhas embalagens e papéis e as eternas cinzas. Ele percorreu rapidamente as prateleiras em busca de vitaminas. Abriu a porta de uma geladeira industrial mas o fedor azedo dos mortos saiu da escuridão e ele rapidamente fechou-a outra vez. Ficaram parados na rua. Olhou para o céu cinzento. O vapor suave de suas respirações. O menino estava exausto. Ele o segurou pela mão. Temos que procurar mais um pouco, ele disse. Temos que continuar procurando.

As casas nos limites da cidade ofereciam pouco mais. Subiram os degraus dos fundos de uma cozinha e começaram a vasculhar nos armários. As portas dos armários todas abertas. Uma lata de fermento. Ele ficou ali olhando para ela. Vasculhou as gavetas de um aparador na sala de jantar. Foram até a sala de estar. Rolos de papel de parede caídos no chão como documentos antigos. Deixou o menino sentado na escada segurando os paletós enquanto ele subia.

Tudo cheirava a umidade e podridão. No primeiro quarto um cadáver ressecado com as cobertas na altura do pescoço. Restos de cabelo apodrecido no travesseiro. Ele segurou a bainha inferior do cobertor e puxou-o para fora da cama e o sacudiu e dobrou debaixo do braço. Vasculhou as cômodas e os armários. Um vestido de verão num cabide de arame. Nada. Desceu novamente a escada. Estava ficando escuro. Pegou o menino pela mão e saíram pela porta da frente até a rua.

No alto da colina ele se virou e examinou a cidade. Escuridão chegando rápido. Escuridão e frio. Ele colocou dois dos paletós sobre os ombros do menino, envolvendo-o, parca e tudo.

Estou com muita fome, Papai.

Eu sei.

Vamos conseguir encontrar nossas coisas?

Sim. Eu sei onde elas estão.

E se alguém encontrar?

Não vão encontrar.

Espero que não.

Não vão. Venha.

O que foi isso?

Não ouvi nada.

Escute.

Não estou ouvindo nada.

Ficaram escutando. Então na distância ouviram um cachorro latir. Ele se virou e olhou na direção da cidade que escurecia. E um cachorro, ele disse.

Um cachorro?

Sim.

De onde veio?

Não sei.

Não vamos matá-lo, vamos, Papai?

Não. Não vamos matá-lo.

Ele baixou os olhos para o menino. Tremendo sob os casacos. Curvou-se e o beijou no rosto áspero. Não vamos machucar o cachorro, ele disse. Eu prometo.

Dormiram num carro estacionado debaixo de um viaduto com os paletós e o cobertor empilhados em cima deles. Na escuridão e no silêncio ele podia ver lampejos de luz que apareciam a esmo na grade da noite. Os andares mais altos dos prédios estavam todos escuros. As pessoas teriam que carregar água lá para cima. Podiam ser desentocadas. O que eles estavam comendo? Sabe Deus. Eles estavam sentados embrulhados nos paletós olhando pela janela. Quem são eles, Papai?

Não sei.

Acordou durante a noite e ficou escutando. Não conseguia se lembrar de onde estava. O pensamento o fez sorrir. Onde estamos? ele disse.

O que foi, Papai?

Nada. Está tudo bem. Vá dormir.

Vamos ficar bem, não vamos, Papai?

Sim. Vamos sim.

E nada de ruim vai acontecer com a gente.

Isso mesmo.

Porque trazemos o fogo.

Sim. Porque trazemos o fogo.

Pela manha uma chuva fria caía. Arremessava-se contra o carro em lufadas mesmo sob o viaduto e dançava na estrada lá adiante. Ficaram sentados observando através da água no vidro. Quando diminuiu, boa parte do dia já tinha passado. Deixaram os casacos e o cobertor no chão do banco de trás e saíram pela estrada para vasculhar mais algumas casas. Fumaça de madeira no ar úmido. Não voltaram a ouvir o cachorro.

Encontraram alguns utensílios e algumas peças de roupa. Um suéter. Um pedaço de plástico que podiam usar como lona. Ele tinha certeza de que estavam sendo observados, mas não via ninguém. Numa despensa eles encontraram parte de um saco de fubá que ratos tinham comido tempos antes. Peneirou a farinha com um pedaço da tela da janela e pegou um punhado de excrementos secos e eles acenderam uma fogueira na varanda de concreto da casa e fizeram bolos com a farinha e cozinharam-nos num pedaço de folha-de-flandres. Comeram-nos devagar um a um. Ele embrulhou os poucos que sobraram num papel e colocou-os na mochila.

O menino estava sentado nos degraus quando viu alguma coisa se mover nos fundos da casa do outro lado da estrada. Um rosto olhava para ele. Um menino, mais ou menos da sua idade, usando um casaco de lã grande demais com as mangas dobradas. Ele se pôs de pé. Correu pela estrada e até a entrada dos carros. Ninguém ali. Olhou na direção da casa e então correu até os fundos do quintal através do mato seco até um riacho parado e negro. Volte, ele disse. Não vou te machucar. Ele estava de pé ali chorando quando seu pai veio correndo do outro lado da estrada e o agarrou pelo braço.

O que você está fazendo? ele sibilou. O que você está fazendo?

Tem um menininho, Papai. Tem um menininho.

Não tem menininho nenhum. O que você está fazendo ?

Tem sim. Eu vi ele.

Disse para você ficar quieto. Não disse? Agora temos que ir. Venha.

Eu só queria ver ele, Papai. Só queria ver ele.

O homem levou-o pelo braço e eles voltaram através do quintal. O menino não parava de chorar e não parava de olhar para trás. Vamos, o homem disse. Temos que ir.

Quero ver ele, Papai.

Não há ninguém para ver. Você quer morrer? E isso o que você quer?

Não me importo, o menino disse, soluçando. Não me importo.

O homem parou. Parou e se agachou e o abraçou. Me desculpe, ele disse. Não diga isso. Você não deve dizer isso.

Voltaram passando pelas ruas molhadas até o viaduto e pegaram os casacos e o cobertor no carro e seguiram até o aterro da ferrovia onde subiram e atravessaram os trilhos até chegar à floresta e pegaram o carrinho e se encaminharam para a rodovia.

E se o menininho não tiver ninguém para cuidar dele? falou. E se ele não tiver um Pai?

Há pessoas aqui. Elas só estavam escondidas.

Ele empurrou o carrinho para a estrada e ficou parado ali. Podia ver as marcas do caminhão nas cinzas molhadas, fracas e desbotadas, mas ali. Achava que podia sentir o cheiro delas. O menino puxava seu casaco.

Papai, ele disse.

O quê?

Estou preocupado com aquele menininho.

Eu sei. Mas ele vai ficar bem.

A gente devia ir buscar ele, Papai. A gente podia pegar ele e trazer ele junto com a gente. A gente podia pegar ele e podia pegar o cachorro. O cachorro podia encontrar alguma coisa para comer.

Não podemos.

E eu daria para aquele menininho a metade da minha comida.

Pare. Não podemos.