Ele estava chorando outra vez. Mas e o menininho? ele soluçava. Mas e o menininho?
Numa encruzilhada eles se sentaram com o pôr-do-sol e espalharam os pedaços do mapa na estrada e os estudaram. Ele abaixou o dedo. Nós estamos aqui, ele disse. Bem aqui. O menino não queria olhar. Ele ficou sentado estudando a rede retorcida de caminhos em vermelho e preto com o dedo no entroncamento onde ele achava que poderiam estar. Como se pudesse ver eles próprios pequeninos agachados ali. Podíamos voltar, o menino disse baixinho. Não é tão longe. Não está tão tarde.
Acamparam numa floresta não longe da estrada. Não conseguiram encontrar um lugar abrigado para fazer uma fogueira que não fosse ser vista então não fizeram nenhuma. Cada um deles comeu dois dos bolos de fubá e dormiram juntos acotovelando-se no chão nos casacos e cobertores. Ele abraçou a criança e depois de algum tempo a criança parou de tremer e depois de algum tempo dormiu.
O cachorro de que ele se lembra nos seguiu por dois dias. Eu tentei chamá-lo de forma amigável para que se aproximasse, mas ele não vinha. Fiz um laço de arame para prendê-lo. Havia três cartuchos no revólver. Nenhum sobrando. Ela foi caminhando pela estrada. O menino olhou para ela e depois olhou para mim e depois olhou para o cachorro e começou a chorar e pediu pela vida do cachorro e eu prometi que não ia machucar o cachorro. Um cachorro que mais parecia um pedaço de treliça com a pele esticada por cima. No dia seguinte ele tinha ido embora. Esse é o cachorro de que ele se lembra. Não se lembra de nenhum menininho.
Tinha posto um punhado de uvas-passas num pano em seu bolso e ao meio-dia eles se sentaram na grama seca na beira da estrada e as comeram. O menino olhou para ele. E tudo o que a gente tem, não é?
Sim.
Nós vamos morrer agora?
Não.
O que vamos fazer?
Vamos beber um pouco d água. Depois vamos continuar seguindo pela estrada.
Está bem.
A noite eles vagaram por um campo tentando encontrar um lugar onde sua fogueira não fosse vista. Arrastando o carrinho atrás deles pelo chão. Tão poucas promessas naquela região. No dia seguinte encontrariam alguma coisa para comer. A noite os surpreendeu numa estrada enlameada. Eles a atravessaram até chegar num campo e caminharam com dificuldade na direção de um grupo distante de árvores destacadas duras e negras contra o fim do mundo visível. Quando chegaram lá já era noite fechada. Ele segurou a mão do menino e chutou ramos e moitas e acendeu uma fogueira. A madeira estava molhada mas ele raspou a casca com sua faca e empilhou o mato e as hastes ao redor para secar no calor. Estendeu então a folha de plástico no chão e pegou os casacos e cobertores do carrinho e tirou os sapatos úmidos e enlameados de ambos e eles ficaram sentados ali em silêncio com as mãos estendidas para o fogo. Ele tentou pensar em algo para dizer mas não conseguia. Já tinha tido esse pensamento antes, para além do torpor e do desespero embotado. O mundo encolhendo em torno de um núcleo cru de entidades analisáveis. Os nomes das coisas lentamente seguindo essas coisas rumo ao esquecimento. Cores. Os nomes dos pássaros. Coisas para comer. Finalmente os nomes das coisas que se acreditava serem verdadeiras. Mais frágeis do que ele teria pensado. Quanto já tinham desaparecido? O idioma sagrado cortado dos referenciais e portanto da realidade. Recolhendo-se como alguma coisa tentando preservar o calor. No momento de oscilar e se perder para sempre.
Dormiram a noite toda em sua exaustão e pela manhã a fogueira tinha apagado e estava preta no chão. Ele puxou os sapatos enlameados e foi juntar lenha, soprando em suas mãos juntas em cunha. Tão frio. Poderia ser novembro. Poderia ser depois disso. Acendeu a fogueira e foi até a beira da floresta e ficou olhando para a região rural. Os campos mortos. Um celeiro a distância.
Caminharam pela estrada de terra ladeando um morro onde outrora tinha havido uma casa. Ela pegara fogo havia muito tempo. O vulto enferrujado de uma fornalha erguendo-se na água preta do porão. Lâminas de metal carbonizadas que antes tinham feito parte do telhado enrugadas no campo para onde o vento as havia soprado. No celeiro eles juntaram uns poucos punhados de algum cereal que ele não reconheceu no chão empoeirado de um depósito de metal e pararam para comê-lo com poeira e tudo. Depois se puseram a caminho da estrada através dos campos.
Seguiram um muro de pedra atravessando as ruínas de um pomar. As árvores em suas fileiras ordenadas retorcidas e pretas e seus ramos caídos profusamente no chão. Ele parou e olhou através dos campos. Vento a leste. As cinzas macias movendo-se nos sulcos. Parando. Movendo-se outra vez. Ele tinha visto tudo aquilo antes. Manchas de sangue coagulado no capim seco e rolos cinzentos de vísceras onde as pessoas mortas violentamente tinham sido estripadas e arrastadas para outro lugar. O muro adiante ostentava um friso de cabeças humanas, todas com rostos parecidos, secos e murchos com seu arreganhar teso de dentes e os olhos afundados. Usavam argolas de ouro nas orelhas de couro e no vento seu cabelo ralo e surrado enroscava-se no crânio. Os dentes nas mandíbulas feito moldes dentários, as tatuagens cruas gravadas com alguma tintura caseira desbotadas sob o sol mendigado. Aranhas, espadas, alvos. Um dragão. Slogans em runas, credos escritos de maneira errada. Antigas cicatrizes com antigos motivos alinhavados nas beiradas. As cabeças que não tinham sido golpeadas com porretes até ficarem disformes tinham sido esfoladas e os crânios nus pintados e marcados na testa com garranchos e um crânio de ossos brancos tinha as suturas dos ossos pintadas cuidadosamente com tinta feito um projeto para montagem. Ele olhou para o menino atrás dele. Parado junto ao carrinho sob o vento. Olhou para o capim seco onde ele se movia e para as árvores escuras e retorcidas em suas fileiras. Uns poucos trapos de roupa soprados de encontro ao muro, tudo cinzento sobre as cinzas. Ele caminhou junto ao muro passando pelas máscaras numa última revista e subindo degraus até sair para onde o menino estava esperando. Passou o braço pelo ombro dele. Está bem, ele disse. Vamos.
Ele tinha passado a ver uma mensagem em cada uma dessas últimas histórias, uma mensagem e uma advertência, e era isso o que mostrava ser aquele quadro dos mortos e dos devorados. Acordou pela manhã e se virou no cobertor e olhou para a estrada lá atrás através das árvores para o caminho pelo qual tinham vindo a tempo de ver as pessoas marchando aparecendo em fileiras de quatro, ombro a ombro. Vestidas com roupas de todas as descrições, todas usando lenços vermelhos no pescoço. Vermelhos ou laranja, o mais próximos do vermelho que puderam encontrar. Ele pôs a mão na cabeça do menino. Shh, ele disse.
O que foi, Papai?
Gente na estrada. Fique com a cabeça abaixada. Não olhe.
Nenhuma fumaça da fogueira extinta. O carrinho não estava visível. Ele se afundou no chão e ficou deitado observando através do antebraço. Um exército de tênis, caminhando pesadamente. Carregando pedaços de cano com um metro de comprimento envolvidos em couro. Correias na cintura. Alguns dos canos estavam enroscados com pedaços de corrente de cuja ponta pendia todo tipo de porrete. Passaram com um estrépito, marchando com um vaivém como o de bonecos de corda. Barbados, seu hálito fumegando através das máscaras. Shh, ele disse. Shh. A falange que se seguia carregava lanças ornadas com fitas, as lâminas compridas feitas com martelo usando molas de caminhão em alguma ferraria tosca do interior. O menino estava deitado com o rosto entre os braços, aterrorizado. Passavam a sessenta metros de distância, o chão tremendo de leve. Com passos pesados. Atrás deles vinham vagões arrastados por escravos usando arreios e lotados com artigos de guerra e depois deles as mulheres, talvez uma dúzia delas, algumas grávidas, e por fim uma companhia suplementar de catamitas com roupas insuficientes para o frio, usando coleiras de cachorro e presos uns aos outros. Todos passaram. Eles ficaram ouvindo.