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Já foram, Papai?

Sim, já foram.

Você viu eles?

Sim.

Eram os caras do mal?

Sim, eram os caras do mal.

Tem um bocado deles, desses caras do mal.

Tem sim. Mas eles já foram.

Puseram-se de pé e limparam as roupas, ouvindo o silêncio a distância.

Para onde eles vão, Papai?

Não sei. Estão em movimento. Isso não é um bom sinal.

Por que não é um bom sinal?

Simplesmente não é. Precisamos pegar o mapa e dar uma olhada.

Puxaram o carrinho do mato com o qual o haviam coberto e ele o levantou, empilhou os cobertores ali e os casacos, empurraram-no até a estrada e ficaram olhando para onde a última pessoa daquela horda esfarrapada parecia pender como uma imagem persistente no ar imóvel.

À tarde começou a nevar outra vez. Ficaram observando os flocos de um cinza pálido caindo como que de uma peneira da penumbra sombria. Continuaram caminhando com dificuldade. Um pouco de neve suja se acumulando na superfície escura da estrada. O menino estava a todo momento ficando para trás e ele parava para esperar. Fique comigo, falou.

Você anda rápido demais.

Vou mais devagar.

Seguiram em frente.

Você não está falando de novo.

Estou falando.

Quer parar?

Sempre quero parar.

Temos que tomar mais cuidado. Eu tenho que tomar mais cuidado.

Eu sei.

Vamos parar. Está bem?

Está bem.

Só temos que encontrar um lugar.

Está bem.

A neve que caía os encortinava. Não havia modo de ver coisa alguma em qualquer dos dois lados da estrada. Ele tossia outra vez e o menino tremia, os dois lado a lado sob a folha de plástico, empurrando o carrinho de supermercado através da neve. Por fim ele parou. O menino tremia de modo incontrolável.

Temos que parar, ele disse.

Está muito frio.

Eu sei.

Onde a gente está?

Onde a gente está?

É.

Não sei.

Se a gente fosse morrer você ia me dizer?

Não sei. Nós não vamos morrer.

Deixaram o carrinho virado num campo de junça e ele pegou os casacos e os cobertores envolvidos pela lona de plástico e seguiram adiante. Segure-se no meu casaco, falou. Não solte. Atravessaram a junça até chegar a uma cerca e passaram por ela, segurando o arame um para o outro com as mãos. O arame estava frio e estalava nos grampos. Escurecia rápido. Seguiram em frente. O lugar aonde chegaram era uma floresta de cedros, as árvores mortas e pretas mas ainda cheias o bastante para segurar a neve. Sob cada uma um precioso círculo de terra preta e folhas mortas de cedro.

Eles se arrumaram debaixo de uma árvore e empilharam os cobertores e casacos no chão e ele envolveu o menino com um dos cobertores e começou a juntar as agulhas mortas numa pilha. Abriu com o pé uma clareira na neve onde o fogo não fosse incendiar a árvore e pegou madeira das outras árvores, quebrando os ramos e sacudindo a neve deles. Quando acendeu o isqueiro junto à fértil isca o fogo pegou instantaneamente e ele soube que não duraria muito. Olhou para o menino. Tenho que ir buscar mais lenha, ele disse. Vou estar nos arredores. Está bem?

Onde são os arredores?

Só quer dizer que não vou estar longe.

Está bem.

A neve a essa altura já alcançava uns quinze centímetros no chão. Ele tropeçou entre as árvores puxando os galhos caídos de onde eles se projetavam na neve e, quando já tinha uma braçada cheia e voltou para a fogueira, esta já estava reduzida a um ninho de brasas trêmulas. Jogou os galhos no fogo e saiu novamente. Difícil se afastar. A floresta estava ficando escura e a luz da fogueira não alcançava longe. Se ele se apressasse só ficava mais fraco. Quando olhou para trás o menino caminhava com dificuldade através da neve que chegava até o meio das suas canelas juntando ramos e empilhando-os nos braços.

A neve caía e não parou de cair. Ele acordou a noite inteira e se levantou e reavivou a fogueira. Tinha desdobrado a lona e escorado uma ponta debaixo da árvore para tentar refletir o calor da fogueira. Olhou para o rosto do menino dormindo sob a luz laranja. As bochechas afundadas sujas de preto. Lutou contra a raiva. Era inútil. Ele não achava que o menino pudesse viajar muito mais. Mesmo que parasse de nevar a estrada ficaria quase intransitável. A neve sussurrava na quietude e as centelhas se elevavam e enfraqueciam e morriam no negrume eterno.

Ele estava meio adormecido quando ouviu um estrondo na floresta. Depois mais um. Sentou-se. A fogueira estava reduzida a chamas espalhadas em meio às brasas. Ele ficou escutando. O estalar comprido e seco de ramos se partindo. Depois outro estrondo. Estendeu o braço e sacudiu o menino. Acorde, ele disse. Temos que ir.

Ele esfregou os olhos para tirar o sono com as costas das mãos. O que foi? ele disse. O que foi, Papai?

Venha. Temos que ir.

O que foi?

São as árvores. Elas estão caindo.

O menino se sentou e olhou ao redor desesperadamente.

Está tudo bem, o homem disse. Venha. Temos que correr.

Ele pegou as cobertas e as dobrou e as envolveu com a lona. Olhou para cima. A neve caiu em seus olhos. A fogueira já quase não passava de carvões e não emitia luz alguma e a floresta tinha quase desaparecido e as árvores estavam caindo por toda parte ao redor deles na escuridão. O menino se agarrava a ele. Afastaram-se e ele tentou encontrar um lugar desimpedido na escuridão mas por fim colocou a lona no chão e eles simplesmente se sentaram e ele puxou os cobertores por cima e abraçou o menino junto de si. O estrondo das árvores caindo e o baque fraco dos montes de neve explodindo no chão faziam o chão estremecer. Ele abraçou o menino e disse que ficaria tudo bem e que ia acabar logo e depois de algum tempo acabou. A surda confusão morrendo na distância. E mais uma vez, solitário e muito distante. Depois nada. Pronto, ele disse. Acho que isso é tudo. Ele cavou um túnel debaixo de uma das árvores caídas, puxando a neve para fora com os braços, as mãos congeladas escondidas dentro das mangas. Arrastaram as cobertas lá para dentro e a lona e depois de algum tempo dormiram novamente apesar do frio intenso.

Quando o dia raiou ele abriu caminho para fora da toca deles, a lona pesada de neve. Ele se pôs de pé e olhou ao redor. Tinha parado de nevar e os cedros estavam espalhados em morros de neve e ramos quebrados e alguns poucos troncos que ainda estavam de pé desfolhados e queimados naquela paisagem cada vez mais acinzentada.Ele caminhou com dificuldade através dos montes de neve deixando o menino adormecido sob a árvore como algum animal hibernando. A neve chegava quase aos seus joelhos. No campo a junça morta tinha sido levada até quase se perder de vista e a neve estava acumulada em montes pontiagudos sobre o arame da cerca e fazia um silêncio impassível. Ele ficou apoiado numa coluna tossindo. Fazia pouca ideia de onde o carrinho se encontrava e achou que estava ficando estúpido e que sua cabeça não estava funcionando direito. Concentre-se, ele disse. Você tem que pensar. Quando ele se virou para voltar o menino o chamava.

Temos que ir, ele disse. Não podemos ficar aqui.

O menino olhava tristemente para os montes cinzentos de neve.

Vamos.

Abriram caminho por entre a cerca.

Aonde a gente vai? o menino disse.

Temos que encontrar o carrinho.

Ele apenas ficou ali, as mãos nas axilas da parca.

Venha, o homem disse. Você tem que vir.