Que lugar é este, Papai?
Shh. Vamos só ficar aqui e escutar.
Não havia nada. O vento farfalhando entre as samambaias mortas na beira da estrada. Um estalido a distância. Porta ou veneziana.
Acho que devíamos dar uma olhada.
Papai não vamos subir ali.
Está tudo bem.
Não acho que a gente devia subir ali.
Está tudo bem. Temos que dar uma olhada.
Aproximaram-se devagar subindo pela passagem. Não havia marcas nos trechos de neve derretendo espalhados ao acaso. Uma sebe alta de alfeneiro morto. Um velho ninho de pássaros alojado em seu vime escuro. Ficaram parados no quintal estudando a fachada. Os tijolos da casa feitos à mão da mesma terra em que ela ficava. A pintura que descascava pendendo em tiras compridas e secas das colunas e da parte inferior, vergada. Uma lamparina que pendia de uma corrente lá no alto. O menino se agarrava a ele enquanto subiam os degraus. Uma das janelas estava ligeiramente aberta e uma corda saía dela e através da varanda para desaparecer na grama. Ele segurou a mão do menino enquanto cruzavam a varanda. Escravos haviam outrora passado por ali levando comida e bebida em bandejas de prata. Foram até a janela e olharam para dentro.
E se tiver alguém aqui, Papai?
Não tem ninguém aqui.
A gente devia ir, Papai.
Temos que achar alguma coisa para comer. Não temos escolha.
Podíamos achar alguma coisa em outro lugar.
Vai ficar tudo bem. Venha.
Ele pegou o revólver do cinto e forçou a porta. Ela girou devagar em suas grandes dobradiças de metal. Ficaram parados escutando. Entraram num amplo vestíbulo com piso num dominó de azulejos de mármore preto e branco. Uma ampla escadaria ascendente. Fino papel Morris nas paredes, manchado de água e caindo. O teto de gesso estava inchado em grandes bolsões e a cornija amarelada e mofada estava arqueada e solta das paredes de cima. Para a esquerda através do vão da porta ficava um grande aparador de nogueira onde devia ser a sala de jantar. As portas e as gavetas já não existiam mais, mas o resto era grande demais para queimar. Ficaram parados na porta. Empilhado numa janela num dos cantos da sala estava um monte grande de roupas. Roupas e sapatos. Cintos. Casacos. Cobertores e velhos sacos de dormir. Ele teria bastante tempo mais tarde para pensar naquilo. O menino segurava sua mão. Estava aterrorizado. Atravessaram o vestíbulo até a sala do outro lado, entraram nela e pararam. Um salão enorme com teto duas vezes mais alto do que a porta. Uma lareira com tijolos aparentes de onde o console e os outros detalhes de madeira tinham sido arrancados e queimados. Havia colchões e roupa de cama dispostos no chão em frente à lareira. Papai, o menino sussurrou. Shh, ele disse.
As cinzas estavam frias. Havia algumas panelas enegrecidas por ali. Ele se pôs de cócoras e pegou uma delas e cheirou-a e colocou de volta. Levantou-se e olhou pela janela lá para fora. Grama cinzenta e pisoteada. Neve cinzenta. A corda que saía pela janela estava amarrada a um sino de metal e o sino estava preso numa guia tosca de madeira que tinha sido pregada à moldura da janela. Ele segurou a mão do menino e os dois seguiram por um estreito corredor dos fundos até a cozinha. Lixo empilhado por toda parte. Uma pia enferrujada. Cheiro de mofo e excrementos. Foram para o quartinho anexo, talvez uma despensa.
No chão desse quartinho havia uma porta ou alçapão e estava trancada com um grande cadeado feito de placas de metal empilhadas. Ele ficou parado olhando.
Papai, o menino disse. Devíamos ir, Papai.
Há uma razão para que isto esteja trancado.
O menino puxava sua mão. Estava à beira das lágrimas. Papai? ele disse.
Temos que comer.
Não estou com fome, Papai. Não estou.
Temos que encontrar um pé-de-cabra ou algo
assim.
Empurraram a porta dos fundos e saíram, o menino pendurando-se nele. Ele enfiou o revólver no cinto e ficou parado olhando para o quintal. Havia um caminho de tijolos e o vulto torcido e mais parecendo arame do que outrora havia sido uma fileira de buxos. No quintal havia um velho arado de ferro apoiado em pilares de tijolos empilhados e alguém tinha metido entre as barras um caldeirão de ferro fundido de 150 litros do tipo usado para cozinhar porcos. Debaixo dele havia as cinzas de uma fogueira e pequenas toras enegrecidas de madeira. Num dos lados uma pequena carroça com pneus de borracha. Todas essas coisas ele viu e não viu. Na outra extremidade do quintal havia um velho defumador de madeira e um depósito de ferramentas. Ele foi até lá meio que arrastando a criança e se pôs a vasculhar entre as ferramentas que estavam de pé num barril sob o telhado do depósito. Voltou com uma pá muito manuseada e ergueu-a com a mão. Venha, ele disse.
De volta à casa, golpeou a madeira em torno da argola do cadeado e por fim meteu a pá debaixo do grampo e arrancou-o. Estava preso através da madeira e a coisa inteira saiu, cadeado e tudo. Ele enfiou com o pé a lâmina da pá debaixo das pontas das tábuas e parou e pegou o isqueiro. Então subiu na haste da pá e levantou a ponta do alçapão e se inclinou e segurou-a. Papai, o menino sussurrou.
Ele parou. Escute, ele disse. Pare com isso. Estamos morrendo de fome. Está entendendo? Então ele levantou a porta do alçapão e abriu-a e deixou-a cair no chão atrás.
Espere aqui, ele disse.
Vou com você.
Achei que você estava com medo.
Estou com medo.
Está bem. Fique bem atrás de mim.
Ele começou a descer os degraus toscos de madeira. Enfiou a cabeça ali e acendeu o isqueiro e varreu a escuridão com a chama como se fosse uma oferenda. Frio e umidade. Um fedor terrível. O menino agarrado ao seu casaco. Ele podia ver parte de uma parede de pedra. Chão de argila. Um velho colchão manchado de escuro. Ele se agachou e desceu mais um pouco e segurou a luz estendida. Amontoadas junto à parede estavam pessoas nuas, homens e mulheres, todos tentando se esconder, ocultando o rosto com as mãos. No colchão estava deitado um homem cujas pernas estavam faltando até a altura dos quadris e os cotos escuros e queimados. O cheiro era hediondo.
Jesus, ele sussurrou.
Então um a um eles se viraram e piscaram os olhos na luz fraca. Ajude-nos, eles sussurraram. Por favor ajude-nos.
Cristo, ele disse. Oh Cristo.
Ele se virou e agarrou o menino. Rápido, ele disse. Rápido.
Tinha deixado cair o isqueiro. Não havia tempo para procurar. Empurrou o menino escada acima. Ajude- nos, eles gritaram.
Rápido.
Um rosto barbado apareceu piscando os olhos ao pé da escada. Por favor, ele disse. Por favor.
Rápido. Pelo amor de Deus rápido.
Ele empurrou o menino pelo alçapão e ele caiu estatelado. Levantou-se e segurou a porta e deixou que ela batesse e se virou para segurar o menino mas o menino tinha se levantado e estava dançando sua pequena dança de terror. Pelo amor de Deus venha, ele sibilou. Mas o menino estava apontando para a janela e quando ele olhou ficou gelado. Através do campo na direção da casa vinham quatro homens barbados e duas mulheres. Ele agarrou o menino pela mão. Cristo, ele disse. Corra. Corra.
Ele irrompeu pela casa até a porta da frente e escada abaixo. Na metade do caminho de descida ele arrastou o menino para o campo. Olhou para trás. Estavam parcialmente ocultos pelas ruínas do alfeneiro mas sabia que no máximo tinham alguns minutos e talvez nenhum minuto em absoluto. Na extremidade do campo eles atravessaram uma moita de bambu morto e saíram para a estrada e a atravessaram para a floresta do outro lado. Ele redobrou o aperto no punho do menino.
Corra, ele sussurrou.Temos que correr.