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Do outro lado do vale do rio a estrada atravessava uma região completamente queimada. Troncos de árvores carbonizados e sem galhos estendendo-se de cada lado. Fumaça movendo-se sobre a estrada e as pontas arqueadas de fios elétricos presos aos postes de luz enegrecidos assobiando baixinho no vento. Uma casa queimada numa clareira e atrás dela uma extensão de pradaria desolada e cinzenta e uma faixa de terra enlameada e vermelha onde um canteiro de obras de estrada jazia abandonado. Mais adiante havia outdoors anunciando motéis. Tudo como havia sido antes, mas desbotado e gasto pelo tempo. No alto da colina pararam no frio e no vento, recuperando o fôlego. Ele olhou para o menino. Eu estou bem, o menino disse. O homem colocou a mão em seu ombro e apontou com a cabeça para a região descoberta lá embaixo. Ele tirou o binóculo do carrinho e ficou parado na estrada e examinou de um lado a outro a planície lá embaixo onde a silhueta de uma cidade se erguia

em meio

ao

cinza como

um rascunho feito a carvão sobre a terra desolada. Nada para se ver. Nenhuma fumaça. Posso ver? o menino disse. Sim. Claro que pode. O menino se apoiou no carrinho e ajustou o foco. O que você vê? o homem disse. Nada. Ele abaixou o binóculo. Está chovendo. Sim, o homem disse. Eu sei.

Deixaram o carrinho numa vala coberto com a lona e avançaram encosta acima em meio aos tocos negros das árvores que ainda se encontravam de pé até o local onde ele tinha visto um trecho de rocha proeminente e se sentaram sob a saliência da rocha e ficaram observando os lençóis cinzentos de chuva estendendo-se através do vale. Estava muito frio. Ficaram sentados bem juntos embrulhados cada um num cobertor por cima do casaco e depois de algum tempo a chuva parou e havia apenas água gotejando no bosque.

Quando o tempo clareou, desceram até o carrinho e puxaram a lona de cima dele e pegaram os cobertores e as coisas de que iam precisar para a noite. Subiram novamente a colina e arrumaram o acampamento na terra seca sob as rochas e o homem se sentou com os braços ao redor do menino tentando aquecê-lo. Embrulhados nos cobertores, observando o escuro sem nome vir envolvê-los. O vulto cinzento da cidade sumia com a chegada da noite como uma aparição e ele acendeu a pequena lamparina e a colocou de volta fora do alcance do vento. Então caminharam até a estrada, ele segurou a mão do menino e foram até o alto da colina onde a estrada chegava em seu ponto mais alto e de onde podiam enxergar mais adiante através da extensão de terra cada vez mais escura a sul, de pé ali no vento, envolvidos por seus cobertores, atentos a qualquer sinal de uma fogueira ou lamparina. Não havia nada. A lamparina nas rochas na parte lateral da colina não passava de um pontinho de luz e depois de algum tempo eles voltaram. Tudo úmido demais para acender uma fogueira. Fizeram sua magra refeição e se deitaram nas cobertas com a lanterna entre eles. Ele tinha trazido o livro do menino, mas o menino estava cansado demais para a leitura. A gente pode deixar a lamparina acesa até eu pegar no sono? ele disse. Sim. Claro que pode.

Ele demorou muito para pegar no sono. Depois de um tempo se virou e olhou para o homem. Seu rosto sob a luz fraca rajado de preto por causa da chuva, como algum ator do velho mundo. Posso te perguntar uma coisa? ele disse.

Pode. Claro.

A gente vai morrer?

Em algum momento. Não agora.

E ainda estamos indo para o sul.

Sim.

Para ficarmos aquecidos.

Sim.

Tudo bem.

Tudo bem o quê?

Nada. Só tudo bem.

Vá dormir.

Tudo bem.

Vou apagar a lamparina. Está bem?

Sim. Está bem.

E então mais tarde na escuridão: Posso te perguntar uma coisa?

Pode. E claro que pode.

O que você faria se eu morresse?

Se você morresse eu ia querer morrer também.

Para poder ficar comigo?

É. Para poder ficar com você.

Tudo bem.

Ele ficou deitado ouvindo a água gotejar no bosque. Um leito de pedra, isto. O frio e o silêncio. As cinzas do mundo falecido carregadas pelos ventos frios e profanos para um lado e para o outro no vazio. Levadas para adiante e espalhadas e levadas para adiante outra vez. Todas as coisas retiradas de seu suporte. Sem esteio no ar tomado pelas cinzas. Sustentadas por uma respiração, trêmulas e breves. Se apenas meu coração fosse de pedra.

Ele acordou antes da aurora e ficou vendo o dia cinzento raiar. Lento e meio opaco. Levantou-se enquanto o menino dormia e calçou os sapatos e envolto pelo cobertor caminhou através das árvores. Desceu para dentro de uma fenda na pedra e ali se agachou tossindo e tossiu durante um longo tempo. Depois ficou apenas ajoelhado nas cinzas. Ergueu o rosto para a manhã pálida. Você está aí? ele sussurrou. Vou te ver enfim? Você tem um pescoço que eu possa estrangular? Você tem um coração? Maldito seja eternamente você tem uma alma? Oh Deus, ele sussurrou. Oh Deus.

Atravessaram a cidade ao meio-dia do dia seguinte. O revólver estava à mão na lona dobrada por cima do carrinho. Mantinha o menino bem perto, ao seu lado. A cidade estava quase toda queimada. Nenhum sinal de vida. Carros na rua incrustada de cinzas, tudo coberto de cinza e poeira. Rastros fósseis na lama seca. Um cadáver na soleira de uma porta seco feito couro. Arreganhando os dentes para o dia. Ele puxou o menino mais para perto. Apenas se lembre que as coisas que você põe na cabeça ficam lá para sempre, falou. Você talvez queira pensar sobre isso.

Você se esquece de algumas coisas, não se esquece?

Sim. Você se esquece do que quer lembrar e se lembra do que quer esquecer.

Havia um lago a cerca de um quilômetro e meio da fazenda de seu tio onde ele e o tio costumavam ir no outono buscar lenha. Ele se sentava na parte de trás do barco a remo colocando a mão na espuma fria enquanto o tio se curvava sobre os remos. Os pés do velho em seus sapatos pretos de criança firmes sobre as traves verticais. Seu chapéu de palha. Seu cachimbo de sabugo nos dentes e um filete de baba oscilando do pé do cachimbo. Ele se virou para ver a margem oposta, segurando no colo os punhos dos remos, tirando o cachimbo da boca para enxugar o queixo com as costas da mão. Na margem havia uma fileira de bétulas que se elevavam com uma brancura de osso contra a escuridão da mata verde lá atrás. A beira do lago um emaranhado de raízes retorcidas de árvores, cinzentas e gastas pelo tempo, as árvores arrancadas por algum furacão anos antes. As árvores em si já tinham sido serradas havia muito para fazer lenha e levadas embora. Seu tio virou o barco e recolheu os remos e foram levados aos bancos de areia até a popa raspar na areia. Uma perca morta de barriga para cima na água límpida. Folhas amarelas. Deixaram os sapatos nas bordas pintadas e mornas e arrastaram o barco até a praia e colocaram a âncora no final da corda. Uma lata de banha cheia de concreto com um parafuso com anel no centro. Caminharam pela margem enquanto seu tio examinava as raízes das árvores, fumando o cachimbo, uma corda de fibra enroscada sobre o ombro. Pegou uma e eles a viraram de cabeça para baixo, usando as raízes como alavanca, até conseguirem deixá-la meio flutuando na água. Calças enroladas até o joelho mas mesmo assim se molharam. Amarraram a corda a um cunho na parte de trás do barco e remaram de volta atravessando o lago, trazendo o tronco que oscilava devagar atrás deles. A essa altura já era noite. Somente o lento e periódico sacudir e o oscilar dos toletes. O espelho escuro do lago e as luzes nas janelas se acendendo ao longo da margem. Um rádio em algum lugar. Nenhum dos dois havia dito uma palavra. Esse era o dia perfeito de sua infância. Esse era o dia certo para servir de molde aos seus outros dias.

Rumaram para o sul nos dias e semanas seguintes. Solitários e obstinados. Uma região de colinas nuas. Casas de alumínio. Às vezes podiam ver trechos da rodovia interestadual lá embaixo através dos troncos lisos de mata de reflorestamento. Frio e ficando mais frio. Logo depois do desfiladeiro alto nas montanhas eles pararam e olharam para o grande golfo ao sul e, até onde podiam ver, os campos estavam queimados, os vultos escurecidos de rocha projetando-se dos baixios de cinza e ondas de cinza se erguendo e soprando para baixo através da desolação. O rastro do sol fraco movendo-se invisível para além da escuridão.