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Você está congelando, não está?

Estou.

Se a gente parar vai ficar com muito frio.

Eu estou com muito frio agora.

O que você quer fazer?

Podemos parar?

Sim. Está bem. Podemos parar.

Foi a noite mais longa de que ele se lembrava em meio a um número bastante grande de noites assim. Ficaram deitados no chão molhado ao lado da estrada sob os cobertores com a chuva martelando a lona e ele abraçado ao menino e depois de algum tempo o menino parou de tremer e depois de algum tempo adormeceu. Os trovões seguiram ribombando para o norte e cessaram e ficou só a chuva. Ele dormiu e acordou e a chuva diminuiu e depois de um tempo parou. Ele se perguntava se seria sequer meia-noite. Estava tossindo e a tosse piorava e acordava a criança. A aurora demorou muito para chegar. Ele se levantava de tempos em tempos para olhar na direção leste e depois de algum tempo era dia.

Amarrou os casacos cada um por vez em torno do tronco de uma arvorezinha e torceu a água. Fez o menino tirar a roupa e o embrulhou num dos cobertores e enquanto ele ficava ali de pé tremendo torceu a água das roupas dele e as devolveu. O chão onde tinham dormido estava seco e se sentaram ali com os cobertores em dobras ao redor e comeram maças e beberam água. Então partiram pela estrada outra vez, cabisbaixos e encapuzados e tremendo em seus trapos como frades mendicantes enviados para obter seu sustento.

À noite pelo menos estavam secos. Estudaram os pedaços do mapa mas ele tinha pouca noção de onde estavam. Ficou parado numa elevação da estrada e tentou se orientar no crepúsculo. Deixaram a estrada principal e seguiram por uma estrada estreita através dos campos e por fim chegaram a uma ponte e a um riacho seco e rastejaram para baixo da encosta e se aninharam lá embaixo.

Podemos acender uma fogueira? o menino disse.

Não temos isqueiro.

O menino afastou os olhos.

Sinto muito. Deixei cair. Não queria te dizer.

Está tudo bem.

Vou encontrar uma pederneira para a gente. Andei procurando. E ainda temos aquela garrafinha de gasolina.

Tudo bem.

Você está com muito frio?

Estou bem.

O menino ficou deitado com a cabeça no colo do homem. Depois de algum tempo disse: Eles vão matar aquelas pessoas, não vão?

Sim.

Por que eles precisam fazer isso?

Não sei.

Vão comer elas?

Não sei.

Vão comer elas, não vão?

Vão.

E a gente não podia ajudar porque senão eles iam comer a gente também.

Sim.

E é por isso que a gente não podia ajudar.

Sim.

Está bem.

Atravessaram cidades que avisavam as pessoas para se afastarem com mensagens rabiscadas nos quadros de anúncios. Os quadros tinham sido pintados de branco usando finas camadas de tinta para que se pudesse escrever neles e através da tinta podiam-se ver anúncios de produtos que já não existiam. Sentaram-se na beira da estrada e comeram o resto das maçãs.

O que foi? o homem disse.

Nada.

Vamos encontrar alguma coisa para comer. Sempre encontramos.

O menino não respondeu. O homem o observava.

Não é isso, é?

Está tudo bem.

Diga.

O menino olhou para longe na estrada.

Quero que você me diga. Está tudo bem.

Ele balançou a cabeça.

Olhe para mim, o homem disse.

Ele se virou e olhou. Parecia ter andado chorando.

Diga.

A gente nunca comeria outras pessoas, comeria?

Não. E claro que não.

Mesmo se estivéssemos famintos?

Nós estamos famintos agora.

Você disse que não estávamos.

Eu disse que não estávamos morrendo. Não disse que não estávamos famintos.

Mas a gente não comeria.

Não. Não comeria.

Não importa o quê.

Não. Não importa o quê.

Porque nós somos os caras do bem.

Sim.

E levamos o fogo.

E levamos o fogo. Sim.

Está bem.

Ele encontrou pedaços de pederneira e sílica numa vala mas no fim foi mais fácil passar o alicate na lateral de uma pedra na base da qual ele tinha feito uma pequena pilha de iscas molhadas com gasolina. Dois dias mais. Três. Estavam realmente famintos. A região estava saqueada, pilhada, devastada. Tinham levado cada migalha. As noites eram de um frio cortante e de um negrume de breu e o longo raiar da manhã trazia um silêncio terrível. Como a aurora antes de uma batalha. A pele cor de cera do menino estava quase translúcida. Com seus grandes olhos vidrados ele tinha o aspecto de um alienígena.

Começava a achar que a morte finalmente os alcançara e que eles deviam encontrar um lugar para se esconder onde não fossem ser encontrados. Havia momentos quando ele ficava sentado observando o menino dormir em que soluçava incontrolavelmente mas não era por causa da morte. Ele não tinha certeza do motivo mas achava que era por causa da beleza ou da bondade. Coisas nas quais ele já não tinha nenhum modo de pensar em absoluto. Eles se agachavam numa floresta árida e bebiam água de uma vala coada com um trapo. Ele tinha visto o menino num sonho deitado numa maca de defunto e acordou aterrorizado. O que ele podia tolerar durante a vigília não podia tolerar à noite e ficou sentado de olhos abertos com medo de que o sonho voltasse.

Vasculhavam as ruínas carbonizadas de casas em que não teriam entrado antes. Um cadáver flutuando na água preta de um porão entre lixo e canos enferrujados. Estava numa sala de estar parcialmente queimada e aberta para o céu. As tábuas empenadas por causa da água inclinadas sobre o quintal. Livros ensopados numa estante. Apanhou um e abriu-o e colocou-o de volta. Tudo úmido. Apodrecendo. Numa gaveta encontrou uma vela. Não havia como acendê-la. Colocou-a no bolso. Caminhou para a luz cinzenta lá fora e ficou parado de pé e viu por um breve momento a verdade absoluta do mundo. As voltas frias e incansáveis da terra morta e abandonada. Escuridão implacável. Os cães cegos do sol em sua corrida. O vácuo preto e esmagador do universo. E em algum lugar dois animais caçados tremendo como marmotas em seu abrigo. Tempo usurpado e mundo usurpado e olhos usurpados com os quais lamentá-lo.

Nos arredores de uma cidadezinha eles se sentaram na cabine de um caminhão para descansar, olhando fixamente através do vidro lavado pelas chuvas recentes. Uma leve poeira de cinzas. Exaustos. Na beira da estrada estava uma tabuleta que alertava do risco de morte, as letras desbotadas com os anos. Ele quase sorriu. Você consegue ler aquilo? ele disse.

Sim.

Não ligue. Não tem ninguém aqui.

Eles estão mortos?

Acho que sim.

Eu gostaria que aquele menininho estivesse com a gente.

Vamos, ele disse.

Sonhos maravilhosos agora dos quais ele abominava despertar. Coisas já não mais conhecidas no mundo. O frio o impelia para a frente a fim de ajeitar a fogueira. Memória dela atravessando o gramado na direção da casa cedo pela manhã numa leve camisola rosa que se colava aos seus seios. Ele achava que cada memória lembrada devia cometer algum ato de violência às suas origens. Como num jogo numa festa. Diga a palavra e passe adiante. Então seja moderado. O que você altera ao se recordar ainda mantém uma realidade, conhecida ou não.