Caminharam pelas ruas envolvidos nos cobertores imundos. Ele levava o revólver na cintura e segurava o menino pela mão. No outro lado da cidade encontraram uma casa solitária num campo e atravessaram e entraram e caminharam pelos quartos. Depararam-se consigo num espelho e ele quase sacou o revólver. Somos nós, Papai, o menino sussurrou. Somos nós.
Ele ficou parado na porta dos fundos e olhou para os campos lá fora e para a estrada depois deles e a terra árida depois da estrada. No pátio havia uma churrasqueira feita de um tambor de duzentos litros cortado de uma ponta à outra com uma tocha e apoiado numa moldura de ferro soldado. Umas poucas árvores mortas no quintal. Uma cerca. Um depósito de metal para ferramentas. Ele encolheu os ombros para deixar cair o cobertor e passou-o sobre os ombros do menino.
Quero que você espere aqui.
Quero ir com você.
Só vou até lá dar uma olhada. Fique sentado aqui. Você vai poder me ver o tempo todo. Prometo.
Atravessou o quintal e empurrou a porta para abri-la, ainda segurando a arma. Era uma espécie de depósito de jardinagem. Chão de terra. Prateleiras de metal com alguns vasos de plástico para flores. Tudo coberto por cinzas. Havia ferramentas de jardinagem apoiadas no canto. Um cortador de grama. Um banco de madeira debaixo da janela e ao lado dele um armário de metal. Ele abriu o armário. Velhos catálogos. Pacotes de sementes. Begônia. Ipoméia. Enfiou-os nos bolsos. Para quê? Na prateleira do alto havia duas latas de óleo de motor e ele colocou o revólver no cinto e estendeu o braço e as apanhou e as colocou no banco. Eram muito velhas, feitas de papelão com tampas de metal. O óleo tinha vazado através do papelão mas ainda assim pareciam estar cheias. Recuou e olhou lá para fora pela porta. O menino estava sentado nos degraus dos fundos da casa embrulhado nos
cobertores
observando-o. Quando ele se virou viu uma lata de gasolina no canto atrás da porta. Sabia que não podia haver gasolina lá dentro e no entanto quando a inclinou com o pé e deixou-a cair para trás mais uma vez se fez um suave ruído de líquido. Apanhou-a, levou-a até o banco e tentou remover a tampa mas não conseguiu. Pegou o alicate no bolso do casaco e abriu as pontas e tentou. Cabia exato e ele rodou a tampa até abri-la e colocou-a no banco e cheirou a lata. Cheiro ruim. Anos de idade. Mas era gasolina e pegaria fogo. Ele atarraxou de volta a tampa e colocou o alicate no bolso. Olhou ao redor em busca de algum recipiente menor mas não havia nenhum. Não devia ter jogado fora a garrafa. Procure na casa.
Atravessando o gramado ele se sentiu quase prestes a desmaiar e teve que parar. Perguntou-se se seria por ter cheirado a gasolina. O menino o observava. Quantos dias até a morte? Dez? Não muito mais do que isso. Ele não conseguia pensar. Por que tinha parado? Virou-se e baixou os olhos para a grama. Caminhou de volta. Experimentando o chão com os pés. Parou e se virou novamente. Então voltou para o depósito. Retornou com uma pá de jardinagem e no lugar onde tinha parado enfiou a pá no chão. Ela afundou até a metade e parou com um som oco de madeira. Ele começou a cavar para tirar a terra.
Devagar. Por Deus ele estava cansado. Apoiou-se na pá. Ergueu a cabeça e olhou para o menino. O menino estava sentado como antes. Ele se curvou e voltou ao trabalho. Não se passou muito tempo até que estivesse descansando entre cada retirada de terra com a pá. O que finalmente desenterrou foi uma peça de compensado coberta com uma folha isolante. Cavou junto às beiradas. Era uma porta com talvez noventa centímetros por um metro e oitenta. Numa das extremidades havia uma argola e um cadeado atados com fita num saco plástico. Ele ficou descansando, segurando-se ao cabo da pá, a testa na curva do braço. Quando levantou os olhos de novo o menino estava de pé no quintal a uns poucos metros dele. Estava muito assustado. Não abra, Papai, ele sussurrou.
Está tudo bem.
Por favor, Papai. Por favor.
Está tudo bem.
Não está não.
Ele estava com os punhos fechados junto ao peito e se balançava para cima e para baixo de medo. O homem deixou cair a pá e colocou os braços ao redor dele. Venha, ele disse. Vamos nos sentar lá na porta e descansar um pouco.
Depois a gente pode ir?
Vamos só nos sentar um pouco.
Está bem.
Sentaram-se embrulhados nos cobertores e ficaram olhando para o jardim lá fora. Ficaram sentados por um bom tempo. Ele tentou explicar ao menino que não havia ninguém enterrado no quintal mas o menino apenas começou a chorar. Depois de algum tempo ele pensou que talvez a criança tivesse razão.
Vamos só ficar sentados. Não vamos nem conversar.
Está bem.
Andaram pela casa outra vez. Ele encontrou uma garrafa de cerveja e um velho trapo de cortina e rasgou uma ponta do pano e enfiou-o no gargalo da garrafa com um cabide. Esta é a nossa nova lamparina, ele disse.
Como podemos acender?
Encontrei um pouco de gasolina no depósito. E um pouco de óleo. Vou te mostrar.
Está bem.
Venha, o homem disse. Está tudo bem. Eu prometo.
Mas quando ele se curvou para ver o rosto do menino sob o capuz do cobertor teve muito medo de que algo tivesse desaparecido e não pudesse mais ser consertado.
Saíram e atravessaram o quintal até o depósito. Ele colocou a garrafa no banco e pegou uma chave de fenda e abriu um buraco numa das latas de óleo e depois abriu um outro menor para ajudar a escorrer. Puxou o pavio da garrafa e encheu-a até mais ou menos a metade, velho óleo para uso em determinada temperatura, espesso e gélido com o frio e que demorou muito tempo para despejar. Ele girou a tampa da lata de gasolina até removê-la e fez um pequeno funil de papel com um dos pacotes de sementes e despejou gasolina na garrafa e colocou o polegar sobre a boca e sacudiu. Então despejou um pouco num prato de argila e pegou o trapo e enfiou-o de novo na garrafa com a chave de fenda. Pegou um pedaço de pederneira do bolso e o alicate e raspou a pederneira com a extremidade serrilhada. Tentou algumas vezes e então parou e despejou mais gasolina no prato. Isto talvez pegue fogo, ele disse. O menino fez que sim. Ele deixou caírem faíscas sobre o prato e elas se transformaram numa chama com um leve farfalhar. Estendeu o braço e pegou a garrafa e inclinou-a e acendeu o pavio e soprou a chama no prato até apagá-la e entregou a garrafa fumegando para o menino. Aqui está, ele disse. Pegue.
O que a gente vai fazer?
Segure a mão na frente da chama. Não deixe
apagar.
Ele se levantou e tirou o revólver do cinto. Esta porta parece a outra porta, ele disse. Mas não é. Sei que você está com medo. Está tudo bem. Acho que talvez haja coisas ali e precisamos dar uma olhada. Não há nenhum outro lugar aonde ir. Isso é tudo. Quero que você me ajude. Se você não quiser segurar a lamparina vai ter que segurar o revólver.
Vou segurar a lamparina.
Está bem. Isso é o que os caras do bem fazem. Eles continuam tentando. Não desistem.
Está bem.
Ele conduziu o menino até o quintal lá fora arrastando a fumaça preta da lamparina. Colocou o revólver no cinto e pegou a pá e começou a arrancar a argola do cadeado do compensado. Ele forçou a pá por baixo e fez uma alavanca para puxá-la e depois se ajoelhou e segurou o cadeado e girou a coisa toda até soltá-la e jogou o cadeado na grama. Forçou a pá sob a porta e pôs os dedos debaixo dela e então se pôs de pé e a ergueu. A terra caiu com barulho pelas tábuas. Ele olhou para o menino. Tudo bem com você? falou. O menino fez que sim em silêncio, segurando a lamparina diante dele. O homem abriu a porta e deixou-a cair na grama. Degraus toscos feitos de dois em dois às dezenas e conduzindo à escuridão lá embaixo. Ele estendeu o braço e pegou a lamparina do menino. Começou a descer a escada mas depois se virou e se inclinou e beijou o menino na testa.