O que acordou o menino foi ele moendo café num pequeno moedor manual. Ele se sentou e olhou por toda parte ao redor. Papai? ele disse.
Oi. Você está com fome?
Tenho que ir ao banheiro. Tenho que fazer xixi.
Ele apontou com a espátula na direção da porta baixa de aço. Ele não sabia como usar o toalete mas usaria assim mesmo. Eles não ficariam ali tanto tempo assim e ele não ia ficar abrindo e fechando o alçapão mais do que precisavam. O menino passou por ele, o cabelo fosco de suor. O que é isso? ele disse.
Café. Presunto. Biscoitos.
Uau, o menino disse.
Arrastou um baú pelo chão e colocou-o entre os beliches, cobriu-o com uma toalha e arrumou os pratos e copos e utensílios de plástico.Colocou uma tigela de biscoitos cobertos com uma toalha de mão e um prato com manteiga e uma lata de leite condensado. Sal e pimenta. Olhou para o menino. O menino parecia drogado. Pegou uma frigideira do fogão e espetou um pedaço de presunto dourado e colocou no prato do menino e pegou ovos mexidos numa outra panela e serviu com uma concha de feijão cozido e pôs café em suas xícaras. O menino levantou os olhos para ele.
Vá em frente, ele disse. Não deixe esfriar.
O que eu como primeiro?
O que você quiser.
Isto é café?
Sim. Aqui. Você coloca a manteiga nos biscoitos. Desse jeito.
Certo.
Você está bem?
Não sei.
Está se sentindo bem?
Estou.
O que é?
Você acha que a gente devia agradecer às pessoas?
As pessoas?
As pessoas que nos deram isso tudo.
Bem. Sim, acho que podemos fazer isso.
Você faz?
Por que não você?
Não sei como.
Sabe sim. Você sabe como dizer obrigado.
O menino ficou sentado olhando para o próprio prato. Parecia perdido. O homem estava prestes a falar quando ele disse: Queridas pessoas, obrigado por toda esta comida e tudo mais. Nós sabemos que vocês guardaram para vocês mesmos e se estivessem aqui a gente não ia comer por mais que estivéssemos com fome e sentimos muito por vocês não terem podido comer e esperamos que vocês estejam a salvo no paraíso com Deus.
Ele levantou os olhos. Está bom assim? ele disse.
Sim. Acho que está bom.
Ele não queria ficar sozinho no abrigo. Seguia o homem de um lado a outro do gramado enquanto ele carregava os jarros plásticos com água até o banheiro nos fundos da casa. Levaram o fogãozinho com eles e umas duas panelas e ele esquentou água e despejou-a na banheira e despejou água dos jarros de plástico. Levou um bom tempo mas ele queria que ficasse bom e quente. Quando a banheira estava quase cheia o menino se despiu e entrou tremendo na água e se sentou. Esquelético e imundo e nu. Abraçado aos próprios ombros. A única luz era a do anel de dentes azuis na boca do fogão. O que você acha? o homem disse.
Enfim quente.
Enfim quente?
É.
De onde você tirou isso?
Não sei.
Está bem. Enfim quente.
Ele lavou o cabelo sujo e embaraçado e limpou-o com o sabão e as esponjas. Esvaziou a água suja em que se sentava e despejou sobre ele água limpa e morna da panela e embrulhou-o tremendo numa toalha e embrulhou-o novamente num cobertor. Penteou seu cabelo e olhou para ele. Vapor saía dele como fumaça. Está tudo bem? falou.
Estou com frio nos pés.
Você vai ter que esperar por mim.
Rápido.
Ele tomou banho e depois saiu e despejou detergente na banheira e mergulhou os jeans fedidos dos dois na água com um desentupidor de privada. Você está pronto? ele disse.
Estou.
Ele abaixou o bico de gás até que ele oscilasse e se apagasse e então acendeu a lanterna e deixou-a no chão. Eles se sentaram na beirada da banheira, colocaram os sapatos e ele deu para o menino a panela e o sabão e ele pegou o fogão e a garrafinha de gasolina e o revólver e embrulhados nos cobertores eles atravessaram o quintal até o abrigo.
Sentaram-se no beliche com um tabuleiro de xadrez entre eles, usando suéteres e meias novos e envolvidos pelos cobertores novos. Ele tinha pendurado num gancho um pequeno aquecedor a gás e eles bebiam Coca-Cola em canecas de plástico e depois de algum tempo ele voltou à casa e torceu os jeans e trouxe-os de volta e pendurou-os para secar.
Quanto tempo a gente pode ficar aqui Papai?
Não muito.
Quanto tempo é isso?
Não sei. Talvez mais um dia. Dois.
Porque é perigoso.
Sim.
Acha que eles vão encontrar a gente.
Não. Não vão encontrar a gente.
Talvez encontrem.
Não vão não. Eles não vão encontrar a gente.
Mais tarde quando o menino estava dormindo ele foi até a casa e levou parte da mobília para o gramado do quintal. Então arrastou um colchão e colocou-o sobre o alçapão e pelo lado de dentro ele puxou-o sobre o compensado e baixou cuidadosamente a porta de modo a fazer com que o colchão cobrisse-a inteiramente. Não era grande coisa como estratagema mas melhor do que nada. Enquanto o menino dormia ele ficou sentado no beliche e sob a luz da lanterna fabricou balas falsas a partir de um galho de árvore com sua faca, experimentando-as cuidadosamente nos furos vazios do tambor e desbastando a madeira mais um pouco. Afiou as pontas com a faca e arredondou-as esfregando sal e sujou-as com fuligem até ficarem da cor do chumbo. Quanto terminou de aprontar todas as cinco ele as ajustou nos orifícios e fechou o tambor e virou a arma e observou-a. Mesmo tão de perto a arma parecia estar carregada e ele a colocou de lado e se levantou para sentir as pernas dos jeans fumegando sobre o aquecedor.
Tinha guardado o punhadinho de invólucros vazios de cartuchos do revólver mas tinham sumido junto com tudo mais. Devia tê-los guardado no bolso. Tinha perdido até mesmo o último. Pensou que talvez pudesse carregá-los com os cartuchos calibre 45. As cápsulas provavelmente caberiam se ele conseguisse tirá-las sem disparar. Raspar as balas até o tamanho certo com o estilete. Ele se levantou e percorreu uma última vez o depósito. Então abaixou o lampião até a chama vacilar e beijou o menino e subiu no outro beliche sob os cobertores limpos e olhou mais uma vez para aquele pequenino paraíso tremendo sob a luz alaranjada do aquecedor e então adormeceu.
A cidade tinha sido abandonada anos antes mas eles caminhavam pelas ruas cheias de lixo com cuidado, o menino segurando sua mão. Passaram por um depósito de lixo de metal onde alguém em algum momento tinha tentado queimar corpos humanos. A carne e os ossos carbonizados sob as cinzas úmidas poderiam ser anônimos a não ser pelo formato dos crânios. Já não havia mais cheiro. Havia um mercado no fim da rua e num dos corredores com caixas vazias empilhadas havia três carrinhos metálicos de supermercado. Ele os examinou e soltou um deles puxando-o e se agachou e virou as rodas e se pôs de pé e empurrou-o corredor acima e abaixo novamente.
Podíamos pegar dois, o menino disse.
Não.
Eu poderia empurrar um.
Você é o observador. Preciso que você seja nosso vigia.
O que a gente vai fazer com tudo aquilo?
Vamos simplesmente ter que levar o que pudermos.
Você acha que alguém vai vir?
Sim. Em algum momento.
Você disse que não ia vir ninguém.
Não quis dizer nunca.
Eu gostaria que a gente pudesse morar aqui.
Eu sei.
Podíamos ficar de vigia.
Estamos de vigia.
E se alguns dos caras do bem vierem?
Bem, eu não acho que a gente é capaz de encontrar os caras do bem na estrada.
Nós estamos na estrada.