Havia dias que atravessavam aquele terreno cauterizado. O menino tinha encontrado alguns gizes de cera e tinha pintado o rosto com presas e caminhava penosamente sem reclamar. Uma das rodas dianteiras do carrinho tinha dado defeito. O que fazer a respeito? Nada. Onde tudo diante deles estava queimado até as cinzas não havia como fazer fogo e as noites eram mais compridas e frias do que qualquer coisa que eles tivessem encontrado até ali. Frias a ponto de fazer estalar as pedras. De tirar a sua vida. Ele segurava o menino trêmulo junto do corpo e contava cada frágil respiração no escuro.
Acordou com o som de trovão a distância e se sentou. A luz fraca em toda parte, trêmula e difusa, refratada pela chuva de fuligem oscilando no ar. Puxou a lona ao redor deles e ficou acordado durante um longo tempo, escutando. Se eles se molhassem não haveria uma fogueira diante da qual se secar. Se eles se molhassem provavelmente morreriam.
A escuridão que via ao acordar nessas noites era cega e impenetrável. Uma escuridão capaz de fazer doer seus ouvidos quando se punha a escutar. Com frequência ele tinha que se levantar. Nenhum som além do vento nas árvores nuas e enegrecidas. Ele se levantou e ficou cambaleando naquela escuridão fria e autista com os braços estendidos para se equilibrar enquanto os cálculos nos recessos do seu crânio tentavam com esforço chegar a conclusões. Uma velha narrativa. Tentar ficar em pé. Não havia queda que não se antecedesse por uma inclinação. Ele marchava a passos largos no nada, contando-os para poder voltar. Olhos fechados, braços remando. Ereto em relação a quê? Algo sem nome na noite, veio ou matriz. Para o qual ele e as estrelas eram satélite comum. Como o grande pêndulo em sua rotunda marcando inscrições nos longos movimentos diurnos do universo, dos quais é possível dizer que ele não sabe nada, e no entanto deveria saber.
Foram necessários dois dias para atravessar aquela região pedregosa e coberta pelas cinzas. A estrada adiante corria pelo topo de uma serrania onde o bosque árido descia pela encosta por todos os lados. Está nevando, o menino disse. Olhou para o céu. Um único floco cinzento caindo. Pegou-o na mão e o observou expirar ali como o último exército da cristandade.
Avançaram juntos com a lona puxada sobre eles. Os flocos molhados e cinzentos rodopiando e caindo de lugar nenhum. Lama suja e derretida nas laterais da estrada. Agua negra correndo, vindo de sob os montes de cinza encharcados. Não havia mais as grandes fogueiras nas serranias distantes. Ele achava que os cultos sangrentos deviam ter todos se consumido uns aos outros. Ninguém viajava naquela estrada. Nenhum agente rodoviário, nenhum saqueador. Depois de algum tempo chegaram a uma garagem de beira de estrada e entraram pela porta aberta e olharam para a neve cinzenta acompanhada de chuva caindo lá fora em lufadas vindas da região mais alta.
Apanharam algumas caixas velhas e fizeram uma fogueira no chão e ele encontrou algumas ferramentas, esvaziou o carrinho e se sentou para arrumar a roda. Tirou o parafuso e arrancou o eixo com uma furadeira manual e o encaixou de novo com um pedaço de cano que tinha cortado no comprimento com uma serra para metal. Depois parafusou tudo novamente, levantou o carrinho e o fez deslizar pelo chão. Andava bastante bem. O menino ficou sentado observando tudo.
Pela manhã seguiram em frente. Terra desolada. Um couro de javali pregado à porta de um celeiro. Infestado por ratos. A visão rápida de um rabo. Dentro do celeiro três cadáveres pendendo dos caibros do telhado, secos e empoeirados em meio às pálidas ripas de luz. Pode ser que tenha alguma coisa aí, o menino disse. Pode ser que tenha algum milho ou coisa do tipo. Vamos, o homem disse. Preocupava-se principalmente com os sapatos deles. Isso e comida. Sempre comida. Num velho de fumador de madeira encontraram um presunto pendurado num gancho num canto alto. Parecia algo retirado de uma tumba, de tão seco e drenado. Cortou-o com a faca. Carne suculenta vermelha e salgada lá dentro. Condimentada e gostosa. Fritaram-na aquela noite em sua fogueira, pedaços grossos, e colocaram os pedaços para ferver junto com uma lata de feijões. Mais tarde ele acordou na escuridão e pensou ter ouvido o soar de tambores em algum lugar nas colinas baixas e escuras. Então o vento mudou de direção e só o que havia era o silêncio.
Em sonhos sua pálida noiva vinha em sua direção surgindo de um dossel verde e frondoso. Seus mamilos polidos e os ossos das costelas brancos. Usava um vestido de gaze e o cabelo negro estava preso em pentes de marfim, em pentes de madrepérola. Seu sorriso, seus olhos voltados para baixo. Pela manhã estava nevando outra vez. Contas de pequeno gelo cinzento enfileiradas nos fios de luz lá no alto.
Ele desconfiava de tudo aquilo. Dizia que os sonhos corretos para um homem em perigo eram sonhos com o perigo e tudo mais era a chamada do langor e da morte. Dormia pouco e comia pouco. Sonhava que caminhava num bosque florido onde pássaros voavam diante deles ele e o menino e o céu era de um azul dolorido mas ele estava aprendendo a despertar de mundos de sereia como esses. Deitado ali no escuro com o fantástico gosto de um pêssego de algum pomar fantasma desaparecendo da boca. Pensou que se vivesse o suficiente o mundo enfim teria desaparecido por completo. Como o mundo agonizante que os cegos recentes habitam, tudo aquilo desaparecendo lentamente da memória.
Dos devaneios na estrada não havia como acordar. Ele se arrastava. Conseguia se lembrar de tudo dela, menos do cheiro. Sentado num teatro com ela ao seu lado inclinada para a frente ouvindo a música. Volutas douradas e candelabros e as altas dobras das cortinas nas colunas em ambos os lados do palco. Ela segurava a mão dele no colo e ele podia sentir a parte de cima de suas meias através do tecido fino de seu vestido de verão. Congele esta imagem. Agora invoque sua escuridão e seu frio e maldito seja você.
Ele confeccionou limpadores com duas vassouras velhas que tinha encontrado e as amarrou com arame no carrinho para afastar os ramos de árvores da estrada em frente às rodas e colocou o menino no carrinho e ficou na parte de trás como um condutor de trenó puxado por cães e eles seguiram colina abaixo, guiando o carrinho nas curvas com seus corpos à maneira das pessoas andando de trenó. Foi a primeira vez que viu o menino sorrir em muito tempo.
No topo da colina havia uma curva e um recuo na estrada. Uma velha trilha que seguia através da floresta. Saíram e se sentaram num banco e olharam para o vale onde a terra desaparecia no nevoeiro arenoso. Um lago lá embaixo. Frio e cinzento e encorpado no bojo saqueado dos campos.
O que é aquilo, Papai?
E uma represa.
Para que serve?
Ela fez o lago. Antes que eles construíssem a represa só existia um rio lá embaixo. A represa usava a água que corria através dela para fazer girar ventiladores grandes chamados turbinas que gerariam eletricidade.
Para acender as luzes.
Sim. Para acender as luzes.
A gente pode descer para olhar?
Acho que está longe demais.
A represa vai ficar aqui por muito tempo?
Acho que sim. E feita de concreto. Provavelmente vai ficar aqui por centenas de anos. Milhares, talvez.
Você acha que poderia ter peixes no lago?
Não. Não há nada no lago.
Naquela época do passado em algum lugar bem perto deste lugar ele tinha observado um falcão descer voando ao longo da comprida parede azul das montanhas e acertar com a quilha de seu esterno o pássaro que estava no meio de um bando de grous e levá-lo até o rio lá embaixo todo desengonçado e destroçado e arrastando sua plumagem frouxa e bufante no ar parado do outono.