Nada.
Não. Me diga.
Podia haver gente viva em algum outro lugar. Que outro lugar.
Não sei. Qualquer lugar.
Você quer dizer além da terra?
É.
Acho que não. Eles não poderiam viver noutro lugar.
Nem mesmo se pudessem chegar lá?
Não.
O menino desviou os olhos.
O quê? o homem disse.
Ele balançou a cabeça. Não sei o que a gente está fazendo, ele disse.
O homem começou a responder. Mas não respondeu. Depois de um tempo disse: Há pessoas. Há pessoas e nós vamos encontrá-las. Você vai ver.
Preparou o jantar enquanto o menino brincava na areia. Tinha uma espátula feita com uma lata de comida achatada e com ela construiu uma cidadezinha. Cavou ruelas na areia. O homem foi até lá e se agachou e olhou para ela. O menino levantou os olhos.
O oceano vai levar, não vai? falou.
Sim.
Está tudo bem.
Você consegue escrever o alfabeto?
Consigo.
Não estamos mais nos ocupando das suas aulas.
Eu sei.
Você consegue escrever alguma coisa na areia? Talvez eu pudesse escrever uma carta para os caras do bem. Então se eles passarem vão saber que a gente esteve aqui. Podíamos escrever lá em cima onde o mar não conseguisse apagar.
E se os caras do mal vissem?
É.
Eu não devia ter dito isso. Podíamos escrever uma carta para eles.
O menino balançou a cabeça. Está tudo bem, ele disse.
Ele carregou a pistola sinalizadora e assim que escureceu eles saíram pela praia para longe da fogueira e ele perguntou ao menino se ele queria disparar.
Você dispara, Papai. Você sabe como fazer isso.
Está bem.
Ele empunhou a arma e apontou-a para a enseada e puxou o gatilho. O clarão descreveu um arco na penumbra com um longo ruído sibilante e explodiu em algum lugar lá adiante sobre a água numa luz nublada e ficou pendendo ali. Os filetes quentes de magnésio foram caindo vagarosamente pela escuridão e a pálida linha da oscilação da maré surgiu no clarão e aos poucos desapareceu. Ele abaixou os olhos para o rosto erguido do menino.
Eles não conseguiriam ver isso de muito longe, conseguiriam, Papai?
Quem?
Qualquer um.
Não. Não muito longe.
Se você quisesse mostrar onde está.
Você quer dizer para os caras do bem?
É. Ou para qualquer pessoa que você quisesse que soubesse onde você está.
Como quem?
Não sei.
Como Deus?
É. Talvez alguém desse tipo.
Pela manhã ele fez uma fogueira e caminhou pela praia enquanto o menino dormia. Tinha saído não fazia muito tempo mas sentiu um estranho desconforto e quando voltou o menino estava de pé na praia envolvido em seus cobertores esperando por ele. Ele apertou o passo. Quando o alcançou ele estava se sentando.
O que foi? ele disse. O que foi?
Não estou me sentido bem, Papai.
Ele colocou a palma da mão sobre a testa do menino. Ele estava ardendo. Ele o apanhou e levou até a fogueira. Está tudo bem, ele disse. Você vai ficar bem.
Acho que vou ficar doente.
Está tudo bem.
Sentou-se com ele na areia e segurou sua testa enquanto ele se curvava e vomitava. Limpou a boca do menino com a mão. Me desculpe, o menino disse. Shh. Você não fez nada de errado.
Levou-o ao acampamento e cobriu-o com cobertores. Tentou fazer com que bebesse um pouco d’água. Colocou mais lenha na fogueira e se ajoelhou com a mão em sua testa. Você vai ficar bem, disse. Estava aterrorizado.
Não vá embora, o menino falou.
É claro que eu não vou embora.
Nem por um tempinho só.
Não. Estou bem aqui.
Está bem. Está bem, Papai.
Ele o abraçou a noite inteira, cochilando e acordando aterrorizado, tentando sentir com a mão o coração do menino. Pela manhã não tinha melhorado. Tentou fazer com que bebesse um pouco de suco mas ele não quis. Apertou a mão contra sua testa, invocando um frescor que não vinha. Limpou sua boca pálida enquanto ele dormia. Vou fazer o que prometi, ele sussurrou. Não importa o que aconteça. Não vou te enviar para a escuridão sozinho.
Vasculhou no estojo de primeiros socorros do barco mas não havia nada de muito útil. Aspirinas. Bandagens e desinfetante. Alguns antibióticos mas tinham prazo de validade curto. Ainda assim eram tudo o que tinha e ele ajudou o menino a beber e colocou uma das cápsulas em sua língua. Estava banhado em suor. Já tinha tirado seus cobertores e agora abriu o zíper de seu casaco e despiu-o e depois tirou suas roupas e levou-o para longe da fogueira. O menino levantou os olhos para ele. Estou com tanto frio, disse.
Eu sei. Mas você está com a temperatura muito alta e temos que te esfriar.
Pode me dar um outro cobertor?
Sim. Claro.
Você não vai se afastar.
Não. Não vou me afastar.
Levou as roupas imundas do menino para a arrebentação e as lavou, parado e tremendo na fria água salgada nu da cintura para baixo e agitando-as para cima e para baixo e torcendo-as. Estendeu-as junto à fogueira em varas enterradas na areia de modo inclinado e colocou mais madeira no fogo e foi se sentar junto ao menino outra vez, alisando seu cabelo embaraçado. A noite abriu uma lata de sopa e colocou-a sobre os carvões e comeu e observou a escuridão se aproximando. Quando acordou estava deitado tremendo na areia e a fogueira tinha praticamente se reduzido a cinzas e era noite fechada. Ele se sentou desesperado e estendeu a mão para o menino. Sim, ele sussurrou. Sim.
Reacendeu a fogueira e pegou um pano e umedeceu-o e colocou sobre a testa do menino. A aurora invernosa se aproximava e quando havia luz suficiente para ver ele foi para a floresta para além das dunas e voltou arrastando um grande apanhado de ramos e galhos mortos e se pôs a quebrá-los e empilhá-los junto à fogueira. Esmagou aspirinas numa xícara e dissolveu-as em água e colocou um pouco de açúcar e se sentou e levantou a cabeça do menino e segurou a xícara enquanto ele bebia.
Caminhou pela praia, encurvado e tossindo. Ficou parado olhando para as ondas escuras lá adiante. Estava atordoado de fadiga. Voltou e se sentou junto ao menino e dobrou novamente o pano e enxugou sua testa e depois estendeu o pano sobre a testa. Você tem que ficar por perto, ele disse. Você tem que ser rápido. Para poder ficar com ele. Abraçá-lo bem perto de si. O último dia da terra.
O menino dormiu o dia todo. Ele o acordava a toda hora para beber água com açúcar, a garganta seca do menino se contraindo e fazendo ruídos espasmódicos. Você tem que beber ele disse. Está bem, falou ofegante o menino. Girou a xícara na areia à sua frente e pôs o cobertor dobrado como um travesseiro sob sua cabeça suada e cobriu-o. Você está com frio? ele disse. Mas o menino já tinha adormecido.
Tentou ficar acordado a noite inteira mas não conseguia. Despertava incontáveis vezes e se sentava e se estapeava ou se levantava para colocar madeira no fogo. Abraçava o menino e se curvava para ouvir a respiração difícil. A mão nas costelas magras e marcadas. Caminhou na praia até onde a luz alcançava e ficou parado com as mãos em punho no alto do crânio e caiu de joelhos soluçando de raiva.
Choveu brevemente à noite, um suave tamborilar sobre a lona. Ele puxou-a por cima deles e se virou e ficou deitado abraçado à criança, observando as chamas azuis através do plástico. Caiu num sono sem sonhos.
Quando acordou mal sabia onde estava. A fogueira tinha se apagado, a chuva tinha parado. Jogou a lona para trás e se levantou apoiado nos cotovelos. Luz cinzenta do dia. O menino o observava. Papai, ele disse.