Você tentou nos matar.
Estou morrendo de fome, cara. Você teria feito a mesma coisa.
Você levou tudo.
Qual é, cara. Eu vou morrer.
Vou te deixar do jeito que você nos deixou.
Qual é. Estou te implorando.
Ele empurrou o carrinho para trás e colocou o revólver por cima e olhou para o menino. Vamos, ele disse. E partiram pela estrada rumo ao sul com o menino chorando e olhando para a criatura nua e magra como uma tábua lá atrás parada na estrada tremendo e abraçando o próprio corpo. Oh Papai, ele soluçou.
Pare.
Não consigo parar.
O que você acha que teria acontecido conosco se não tivéssemos alcançado ele? Pare.
Estou tentando.
Quando chegaram à curva da estrada o homem ainda estava lá de pé. Não havia lugar algum aonde pudesse ir. O menino não parava de olhar para trás e quando já não conseguia mais enxergá-lo parou e simplesmente ficou sentado na estrada soluçando. O homem parou o carrinho e ficou olhando para ele. Desenterrou os sapatos deles do carrinho e se sentou e começou a tirar os panos e plásticos do pé do menino. Você tem que parar de chorar, ele disse.
Não consigo.
Colocou os sapatos deles e depois se levantou e voltou pela estrada mas não conseguiu ver o ladrão. Voltou e ficou parado diante do menino. Ele foi embora,disse.Vamos.
Ele não foi embora, o menino disse. Olhou para cima. Seu rosto riscado de fuligem. Não foi.
O que você quer fazer?
Só ajudá-lo, Papai. Só ajudá-lo.
O homem olhou outra vez para a estrada.
Ele só estava com fome, Papai. Ele vai morrer.
Ele vai morrer de qualquer maneira.
Ele está com tanto medo, Papai.
O homem se agachou e olhou para ele. Eu estou com medo, falou. Está entendendo? Eu estou com medo.
O menino não respondeu. Continuou apenas com a cabeça baixa, soluçando.
Não é você quem tem que se preocupar com tudo.
O menino disse alguma coisa mas ele não conseguiu entender. O quê? falou.
Ele levantou os olhos, o rosto úmido e sujo. Sim, sou eu, ele disse. Sou eu.
Empurraram o carrinho vacilante outra vez para a estrada e ficaram parados ali no frio e na escuridão que se aproximava e chamaram mas ninguém veio.
Ele está com medo de responder, Papai.
Foi aqui que a gente parou?
Não sei. Acho que sim.
Foram pela estrada chamando na penumbra vazia, suas vozes perdidas na costa cada vez mais escura. Pararam e ficaram ali com as mãos em forma de concha na boca, gritando insensatamente para a desolação. Por fim ele empilhou as roupas e os sapatos do homem na estrada. Colocou uma pedra por cima. Temos que ir, ele disse. Temos que ir.
Acamparam sem fazer fogueira. Ele escolheu latas para o jantar e as aqueceu no bico de gás e comeram e o menino não disse nada. O homem tentava ver o rosto dele na luz azul que vinha do bico de gás. Eu não ia matá-lo, ele disse. Mas o menino não respondeu. Eles se enrolaram nos cobertores e ficaram deitados ali na escuridão. Ele achou que podia ouvir o mar mas talvez fosse só o vento. Sabia pela respiração dele que o menino estava acordado e depois de algum tempo o menino disse: Mas a gente matou ele.
Pela manhã comeram e se puseram a caminho. O carrinho estava tão cheio que era difícil empurrá-lo e uma das rodas estava enguiçando. A estrada descrevia uma curva ao longo da costa, feixes mortos de capim costeiro pendendo sobre o pavimento. O mar cor de chumbo se movendo a distância. O silêncio. Acordou naquela noite com a luz opaca de carbono da lua que atravessava o céu para além da penumbra tornando os vultos das árvores quase visíveis e ele virou o rosto tossindo. Cheiro de chuva ao longe. O menino estava acordado. Você tem que falar comigo, ele disse.
Estou tentando.
Desculpe-me ter te acordado.
Tudo bem.
Ele se levantou e foi até a estrada. Seu vulto negro correndo da escuridão para a escuridão. Depois um ribombo distante e baixo. Não era trovão. Dava para senti-lo debaixo dos pés. Um som sem igual e tão sem descrição. Alguma coisa imponderável se movendo lá fora na escuridão. A própria terra se contraindo com o frio. O barulho não se repetiu. Qual a época do ano? Qual a idade da criança? Caminhou até a estrada e ficou parado. O silêncio. O salitre da terra secando. Os vultos enlameados de cidades inundadas queimadas até a linha d’água. Numa encruzilhada pedras de um dólmen no chão onde se desfazem os ossos de oráculos que antes falaram. Nenhum som além do vento. O que irá se dizer? Um homem vivo falou essas linhas? Afiou uma pena com seu pequeno canivete para escrever estas coisas em abrunho ou negro-de-fumo? Em algum momento marcado e reconhecível? Ele está vindo roubar meus olhos. Selar minha boca com terra.
Vasculhou entre as latas outra vez uma por uma, segurando-as na mão e espremendo-as como um homem verificando se as frutas de uma barraca estavam maduras. Separou duas que pareciam questionáveis e embalou o resto e encheu o carrinho e partiram novamente pela estrada. Em três dias chegaram a uma cidadezinha portuária e esconderam o carrinho numa garagem atrás de uma casa e empilharam caixas velhas por cima dele e depois se sentaram na casa para ver se alguém viria. Ninguém veio. Vasculhou dentro dos armários mas não havia nada ali. Precisava de vitamina D para o menino ou ele iria ficar raquítico. Ficou parado diante da pia e olhou para o caminho de entrada. Luz da cor de água suja se petrificando nos vidros imundos da janela. O menino se sentava recurvado à mesa com a cabeça nos braços.
Caminharam através da cidade e até as docas. Não viram ninguém. Ele levava o revólver no bolso do casaco e carregava a arma sinalizadora na mão. Caminharam até o píer, as tábuas toscas escuras com piche e presas com espigões às vigas lá embaixo. Postes de amarração de madeira. Cheiro fraco de sal e creosoto vindo da baía. Na margem distante uma fileira de armazéns e o vulto de um petroleiro avermelhado de ferrugem. Um alto pórtico de grua contra o céu soturno. Não há ninguém aqui, ele disse. O menino não respondeu.
Empurraram o carrinho por ruas secundárias e através dos trilhos da ferrovia e saíram de novo na estrada principal do outro lado da cidade. Quando passavam pelo último dos tristes edifícios de madeira alguma coisa passou assobiando ao lado de sua cabeça e ricocheteou com barulho na rua e se fragmentou contra a parede do bloco de edifícios do outro lado. Ele agarrou o menino e se jogou sobre ele e agarrou o carrinho para puxá-lo para junto deles. O carrinho virou e caiu espalhando a lona e os cobertores na rua. Numa janela mais no alto da casa ele pôde ver um homem apontando um arco para eles e empurrou a cabeça do menino para baixo e tentou cobri-lo com seu corpo. Ouviu o som vibrante da corda do arco e sentiu uma dor aguda e quente na perna. Ah seu imbecil, ele disse. Seu imbecil. Agarrou os cobertores removendo-os para um dos lados e estendeu a mão e pegou a pistola sinalizadora e se levantou e empunhou-a e descansou o braço na lateral do carrinho. O menino se agarrava a ele. Quando o homem voltou a aparecer entre a moldura da janela para disparar novamente com o arco ele atirou. O clarão subiu como um foguete na direção da janela num longo arco branco e puderam ouvir o homem gritando. Ele agarrou o menino e o empurrou para baixo e arrastou os cobertores para cima dele. Não se mexa, falou. Não se mexa e não olhe. Ele puxou os cobertores pela rua procurando o estojo da pistola sinalizadora. Finalmente o estojo escorregou para fora do carrinho, ele o agarrou, abriu e tirou dali os cartuchos, e recarregou a pistola e fechou a culatra e colocou o resto dos cartuchos no bolso. Fique bem aí onde você está, sussurrou. Deu uns tapinhas no menino através dos cobertores e se levantou e correu mancando pela rua.
Entrou na casa pela porta dos fundos com a pistola de sinalização empunhada na altura da cintura. A casa tinha sido despida de tudo a ponto de aparecerem os caibros verticais das paredes. Ele atravessou a sala de estar e ficou parado no pé da escada. Pôs-se a escutar para saber se havia movimento no andar de cima. Olhou pela janela da frente para onde o carrinho estava caído na rua e depois subiu a escada.