Uma mulher estava sentada no canto abraçada ao homem. Ela tinha tirado o casaco para cobri-lo. Assim que o viu começou a xingá-lo. A chama tinha incendiado o chão deixando uma trilha de cinzas brancas e havia um leve cheiro de madeira queimada no quarto. Ele atravessou o quarto e olhou pela janela. Os olhos da mulher o acompanharam. Esquelética, cabelo escorrido e grisalho.
Quem mais está aqui em cima?
Ela não respondeu. Ele passou por ela e foi aos outros quartos. Sua perna sangrava muito. Podia sentir as calças colando na pele. Voltou ao quarto da frente. Onde está o arco? ele disse.
Não está comigo.
Onde está?
Não sei.
Eles deixaram vocês aqui, não deixaram?
Eu me deixei aqui.
Ele se virou e desceu mancando a escada e abriu a porta da frente e saiu para a rua caminhando de costas e observando a casa. Quando chegou ao carrinho endireitou-o e empilhou as coisas deles de volta lá dentro. Fique perto, sussurrou. Fique perto.
Eles se alojaram num depósito na saída da cidade. Ele empurrou o carrinho pelo local até um quarto nos fundos, fechou a porta e empurrou o carrinho contra ela de lado. Tirou o bico e o tanque de gás e acendeu o bico e colocou-o no chão e depois desafivelou seu cinto e tirou as calças manchadas de sangue. O menino observava. A seta havia feito um corte logo acima do joelho com cerca de oito centímetros de extensão. Ainda estava sangrando e toda a coxa estava descolorada e podia ver que o corte era fundo. Alguma ponta de seta feita em casa usando metal, uma colher velha, sabe Deus o quê. Ele olhou para o menino. Veja se consegue encontrar o estojo de primeiros socorros, falou.
O menino não se mexeu.
Pegue o estojo de primeiros socorros, droga. Não fique aí parado.
Ele se levantou com um salto e foi até a porta e começou a vasculhar por baixo da lona e dos cobertores empilhados no carrinho. Voltou com o estojo, deu-o para o homem e o homem o apanhou sem comentários, soltou as presilhas e abriu-o. Alcançou o bico de gás e aumentou a chama para ter mais luz. Traga a garrafa d’água, falou. O menino levou a garrafa e o homem desatarraxou a tampa e derramou água sobre a ferida e a manteve fechada com os dedos enquanto limpava o sangue. Passou desinfetante no ferimento e abriu um envelope plástico usando os dentes e tirou uma pequena agulha de sutura em forma de gancho e um rolo de fio de seda e ficou sentado segurando o fio contra a luz enquanto passava-o pelo buraco da agulha. Pegou uma pinça no estojo e com ela segurou a agulha e começou a suturar a ferida. Trabalhava rápido, sem tomar muito cuidado. O menino estava agachado no chão. Olhou para ele e voltou a se ocupar com a sutura. Você não tem que olhar.
Está tudo bem?
Sim. Está tudo bem.
Está doendo?
Sim. Está doendo.
Deu um nó no fio, puxou-o para esticá-lo e cortou o fio com a tesoura do estojo e olhou para o menino. O menino estava olhando para o que havia sido feito. Desculpe-me por ter gritado com você.
Ele ergueu os olhos. Está tudo bem, Papai.
Vamos recomeçar.
Está bem.
Pela manhã estava chovendo e um vento forte sacudia a vidraça nos fundos do depósito. Ele ficou de pé olhando para fora. Uma doca de aço meio desmoronada e submersa na baía. Cabines de barcos pesqueiros afundados se projetando das ondas encrespadas e cinzentas. Nada se movia lá fora. Qualquer coisa que pudesse se mover já tinha sido soprada para longe havia muito tempo. Sua perna latejava e ele tirou as bandagens e desinfetou a ferida e a examinou. A pele inchada e descolorada na treliça dos pontos pretos. Atou as bandagens e vestiu as calças endurecidas de sangue.
Passaram o dia ali, sentados em meio a caixas e engradados. Você tem que falar comigo, ele disse.
Estou falando.
Tem certeza?
Estou falando agora.
Quer que eu te conte uma história?
Não.
Por que não?
O menino olhou para ele e desviou o olhar.
Por que não?
Essas histórias não são verdadeiras.
Elas não têm que ser verdadeiras. São histórias.
E. Mas nas histórias estamos sempre ajudando as pessoas e nós não ajudamos as pessoas.
Por que você não me conta uma história?
Não quero.
Está bem.
Não tenho nenhuma história para contar.
Você podia me contar uma história sobre você mesmo.
Você já conhece todas as histórias sobre mim. Você estava lá.
Você tem histórias por dentro que eu não conheço. Quer dizer como sonhos?
Como sonhos. Ou coisas em que você pensa.
É, mas as histórias deveriam ser felizes.
Elas não têm que ser.
Você sempre conta histórias felizes.
Você não tem nenhuma história feliz?
Elas são mais tipo vida real.
Mas as minhas histórias não são.
As suas histórias não são. Não.
O homem o observava. A vida real é bem ruim? O que você acha?
Bem, acho que ainda estamos aqui. Um bocado de coisas ruins aconteceu mas ainda estamos aqui.
É.
Você não acha que isso seja tão bom.
Está bem para mim.
Tinham puxado uma bancada até a janela e estendido os cobertores e o menino estava deitado ali de barriga olhando para a baía lá fora. O homem se sentou com a perna esticada. No cobertor entre os dois estavam as duas armas e a caixa de cartuchos de sinalização. Depois de um tempo o homem disse: Acho que é bem boa. É uma história bem boa. Tem os seus méritos.
Está tudo bem, Papai. Eu só quero ter um tempo em silêncio.
E quanto aos sonhos? Você costumava me contar seus sonhos às vezes.
Não quero falar sobre nada.
Está bem.
De todo modo não tenho bons sonhos. Eles são sempre sobre alguma coisa ruim acontecendo. Você disse que tudo bem porque sonhos bons não são um bom sinal.
Talvez. Não sei.
Quando você acorda tossindo você anda lá pela estrada ou para algum lugar mas eu ainda posso te ouvir tossindo.
Sinto muito.
Uma vez eu te ouvi chorando.
Eu sei.
Então se eu não devia chorar você também não devia chorar.
Está bem.
Sua perna vai melhorar?
Vai.
Você não está falando por falar.
Não.
Porque ela está parecendo bem machucada.
Não está tão ruim.
O homem estava tentando nos matar. Não estava.
É.Estava
Você matou ele?
Não.
Isso é verdade?
É.
Está bem.
Tudo bem para você?
Tudo.
Pensei que você não quisesse falar.
Não quero.
Partiram dois dias depois, o homem mancando atrás do carrinho e o menino grudado ao seu lado até terem saído dos arredores da cidade. A estrada corria junto à costa plana e cinzenta e havia montes de areia na estrada que o vento levara até lá. Isso tornava o avanço difícil e tinham que limpar o caminho em certos lugares com uma tábua que levavam na parte inferior do carrinho. Foram até a praia e se sentaram em meio à proteção das dunas e estudaram o mapa. Tinham levado o bico de gás com eles e esquentaram água e fizeram chá e ficaram sentados embrulhados em seus cobertores para se proteger do vento. Mais abaixo na costa as vigas gastas pelo tempo de um antigo navio. Vigas cinzentas e carcomidas pela areia, velhas cavilhas torneadas a mão. As ferragens marcadas e de um lilás intenso, fundidas em alguma forja em Cádiz ou Bristol e moldadas numa bigorna enegrecida, boas o suficiente para durar trezentos anos contra o mar. No dia seguinte eles passaram pelas tábuas das ruínas de um balneário e pegaram a estrada que ia para o interior através de uma floresta de pinheiros, o asfalto comprido e reto coberto de agulhas, o vento nas árvores negras.