Ele se sentou na estrada ao meio-dia sob a melhor luz que poderia ter e cortou as suturas com a tesoura e colocou a tesoura de volta no estojo e tirou de lá a pinça. Então começou a puxar os fiapinhos pretos da pele, apertando com a parte chata do polegar. O menino estava sentado na estrada observando. O homem apertava a pinça nas pontas dos fios e os puxava um por um. Pequenos pontos de sangue. Ao terminar guardou a pinça e atou o ferimento com gaze e depois se levantou e vestiu as calças e entregou o estojo ao menino para que o guardasse.
Isso doeu, não doeu? o menino disse.
É. Doeu.
Você é corajoso de verdade?
Mais ou menos.
Qual foi a coisa mais corajosa que você já fez?
Ele cuspiu na estrada um catarro ensanguentado.
Levantar hoje de manhã, falou.
Mesmo?
Não. Não ouça o que eu digo. Venha, vamos continuar.
A noite o vulto escuro de uma outra cidade costeira, o grupo de edifícios altos vagamente desalinhados. Ele achava que as estruturas de ferro tinham amolecido com o calor e depois endurecido de novo deixando os edifícios desnivelados. O vidro derretido das janelas pendia congelado nas paredes como cobertura de bolo. Seguiram em frente. Durante a noite ele às vezes acordava na desolação negra e gelada, vindo de mundos suavemente coloridos de amor humano, as canções dos pássaros, o sol.
Apoiou a testa nos braços cruzados sobre a barra onde empurrava o carrinho e tossiu. Cuspiu uma baba ensanguentada. Tinha que parar para descansar mais e mais. O menino o observava. Em algum outro mundo a criança já teria começado a apagá-lo de sua vida. Mas ele não tinha uma outra vida. Sabia que o menino ficava deitado acordado à noite e com os ouvidos atentos para saber se ele estava respirando.
Os dias iam passando sem ser contados ou marcados em calendário. Pela rodovia interestadual à distância longas filas de carros carbonizados e enferrujados. Aros nus das rodas caídos numa espécie de lama dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de metal. Os cadáveres incinerados reduzidos ao tamanho de crianças e apoiados nas molas expostas dos assentos. Dez mil sonhos sepultados dentro de seus corações queimados. Seguiram em frente. Caminhando no mundo dos mortos como ratos numa esteira. As noites de um silêncio mortal e de uma escuridão ainda mais mortal. Tão frias. Mal conversavam. Ele tossia o tempo todo e o menino o observava cuspir sangue. Seguindo em frente cada vez pior. Imundos, esfarrapados, sem esperanças. Ele parava e se apoiava no carrinho e o menino seguia em frente e então parava e olhava para trás, erguia os olhos cheios de lágrimas para vê-lo parado ali na estrada, fitando-o de algum futuro inimaginável, luzindo na desolação como um tabernáculo.
A estrada cruzou uma depressão onde canos de gelo se projetavam da lama congelada como formações numa caverna. Os restos de uma velha fogueira na beira da estrada. Para além disso uma comprida estrada de concreto. Um pântano morto. Árvores mortas se projetando da água cinzenta com restos de musgo cinzento. O transbordar sedoso das cinzas sobre a calçada. Ficou parado apoiando-se no parapeito arenoso de concreto. Talvez na destruição do mundo fosse finalmente possível ver como ele fora feito. Oceanos, montanhas. O grave antiespetá- culo das coisas deixando de existir. A desolação extensa, hidrópica e secularmente fria. O silêncio.
Tinham começado a se deparar com zonas de pinheiros mortos derrubados pelo vento, grandes esteiras de destroços abertas na região. Ruínas de construções espalhadas pela paisagem e meadas de fios de arame de postes na beira da estrada embaraçadas como linhas de tricô. A estrada estava entulhada com escombros e deu trabalho passar por ali com o carrinho. Por fim eles simplesmente se sentaram na beira da estrada e ficaram olhando para o que havia à frente. Telhados de casas, troncos de árvores. Um barco. O céu aberto lá adiante onde na distância o mar soturno vagarosamente oscilava.
Eles vasculharam as ruínas espalhadas ao longo da estrada e no fim ele achou uma bolsa de lona que poderia pendurar no ombro e uma maleta para o menino. Guardaram os cobertores e a lona e o que restava da comida enlatada e partiram outra vez com suas mochilas e bolsas deixando o carrinho para trás. Subindo com dificuldade através das ruínas. Avançando devagar. Ele tinha que parar para descansar. Sentou-se num sofá na beira da estrada, as almofadas inchadas de umidade. Curvado, tossindo. Puxou a máscara manchada de sangue de cima do rosto e se levantou e enxaguou-a no fosso e pendurou-a e permaneceu apenas parado ali na estrada. Seu hálito formando ondas de vapor branco. O inverno já tinha chegado. Virou-se e olhou para o menino.
De pé com a maleta como um órfão esperando por um ônibus.
Em dois dias chegaram a um amplo rio sazonal onde a ponte jazia desmoronada na água que se movia lentamente. Sentaram-se na beira rachada da estrada e observaram o rio recuando sobre si mesmo e serpenteando sobre a malha de ferro. Examinou a região que ficava do outro lado da água.
O que a gente vai fazer Papai? ele disse.
Bem, o que a gente vai fazer, disse o menino.
Caminharam pela comprida língua de terra enlameada pela maré onde um barquinho jazia meio enterrado e ficaram parados ali o observando. Estava totalmente arruinado. Havia chuva no vento. Caminharam com dificuldade pela praia levando sua bagagem e procurando por abrigo mas não encontraram nenhum. Ele juntou uma pilha da madeira cor de osso que jazia ao longo da costa e acendeu uma fogueira e se sentaram nas dunas com a lona por cima e observaram a chuva fria vindo do norte. Caía com força, fazendo covinhas na areia. Saía vapor da fogueira e a fumaça subia em rolos vagarosos e o menino se enroscou debaixo da lona em que a chuva tamborilava e logo tinha adormecido. O homem puxou o plástico por cima de si e ficou observando o mar cinzento amortalhado lá adiante sob a chuva e as ondas quebrarem ao longo da costa e recuarem novamente sobre a areia escura e salpicada.
No dia seguinte encaminharam-se para o interior. Uma vasta e longa depressão onde samambaias e hortênsias e orquídeas selvagens viviam em efígies de cinzas que o vento ainda não alcançara. O progresso deles era uma tortura. Em dois dias quando chegaram a uma estrada ele colocou a bolsa no chão e se sentou curvado com os braços cruzados sobre o peito e tossiu até não conseguir mais. Dois dias mais e talvez tivessem viajado quinze quilômetros. Cruzaram o rio e pouco adiante chegaram a uma encruzilhada. Na região abaixo deles uma tempestade tinha passado sobre o istmo e nivelado as árvores mortas e pretas de leste a oeste como mato no leito de um rio. Ali acamparam e quando ele se deitou soube que não poderia avançar mais e que aquele era o lugar onde morreria. O menino ficou sentando a observá-lo, lágrimas jorrando dos olhos. Oh Papai, ele disse.
Ele o observou vir pela grama e se ajoelhar com a xícara de água que tinha buscado. Havia luz por toda parte ao redor dele. Pegou a xícara e bebeu e se deitou de novo. Tinham para comer uma única lata de pêssegos mas ele fez com que o menino comesse e não quis nada. Não consigo, falou. Está tudo bem.
Vou guardar metade para você.
Está bem. Guarde até amanhã.
Pegou a xícara e se afastou e ao sair a luz se afastou com ele. Quisera fazer uma tenda com a lona mas o homem não deixava. Disse que não queria nada cobrindo-o. Ficou deitado observando o menino junto à fogueira. Queria conseguir enxergar. Olhe ao seu redor, falou. Não há nenhum profeta na longa crônica da terra que não esteja sendo homenageado aqui hoje. Qualquer forma que você usou para se referir a você mesmo estava certa.