E o desfiladeiro. E ele.
Pela manhã, avançaram. Estava muito frio. A tarde começou a nevar novamente e eles acamparam cedo e se agacharam sob a cobertura da lona e ficaram observando a neve cair no fogo. Pela manhã havia vários centímetros de neve recente no chão mas a neve tinha parado de cair e estava tão quieto que quase podiam ouvir seus corações batendo. Ele empilhou madeira sobre os carvões e abanou a fogueira até reacendê-la e caminhou com dificuldade em meio à neve para desenterrar o carrinho. Escolheu alguma coisa entre as latas, voltou e eles se sentaram junto ao fogo e comeram seus últimos biscoitos e uma lata de salsichas. Num bolso da mochila ele encontrou uma última metade de pacote de chocolate em pó e preparou-o para o menino e depois colocou água quente em sua própria xícara e se sentou soprando a borda.
Você me prometeu que não ia fazer isso, o menino disse.
O quê?
Você sabe o quê, Papai.
Ele despejou a água quente de volta na panela e pegou a xícara do menino e colocou um pouco do chocolate na sua e depois a devolveu.
Tenho que ficar de olho em você o tempo todo, o menino disse.
Eu sei.
Se você descumprir promessas pequenas vai descumprir as grandes. Foi o que você disse.
Eu sei. Mas não vou.
Avançaram com dificuldade ao longo de todo o dia descendo a encosta sul da vertente. Em montes de neve mais profundos o carrinho não passava de forma nenhuma e ele tinha que arrastá-lo atrás de si com uma das mãos enquanto abria uma trilha. Em qualquer outro lugar que não fosse as montanhas eles talvez tivessem encontrado alguma coisa para usar como trenó. Uma velha placa de metal ou uma folha de flandres usada em telhados. Os sacos que envolviam seus pés estavam ensopados e ficaram com frio e molhados o dia inteiro. Ele se apoiou no carrinho para tomar fôlego enquanto o menino esperava. Ouviu-se um estalido agudo vindo de algum lugar na montanha. Depois outro. E só uma árvore caindo, ele disse. Está tudo bem. O menino olhava para as árvores mortas na beira da estrada. Está tudo bem, o homem disse. Todas as árvores do mundo vão cair cedo ou tarde. Mas não em cima da gente.
Como você sabe?
Eu simplesmente sei.
Ainda assim eles se depararam com árvores atravessadas na estrada e tiveram que esvaziar o carrinho e carregar tudo por cima dos troncos e depois guardar tudo de novo do outro lado. O menino encontrou brinquedos que tinha esquecido que tinha. Deixou do lado de fora um caminhão amarelo e seguiram em frente com o brinquedo no alto da lona.
Acamparam num banco de terra na margem mais distante de um riacho de beira de estrada congelado. O vento tinha soprado as cinzas de cima do gelo e o gelo estava preto e o riacho parecia um caminho de basalto serpenteando em meio à floresta. Juntaram lenha na parte mais ao norte da encosta, onde não estava tão molhado, avançando por cima de árvores inteiras e arrastando-as para o acampamento. Acenderam a fogueira e estenderam a lona e penduraram suas roupas molhadas fumegando e fedendo em estacas e se sentaram embrulhados nas colchas nus enquanto o homem segurava os pés do menino junto ao seu estômago para aquecê-los.
Ele acordou choramingando à noite e o homem o abraçou. Shh, ele disse. Shh. Está tudo bem.
Eu tive um sonho ruim.
Eu sei.
Eu te digo o que foi?
Se você quiser.
Eu tinha esse pinguim em que você tinha dado corda e ele andava gingando e batendo as nadadeiras. E a gente estava naquela casa em que a gente morava antes e veio pelo canto mas ninguém tinha dado corda nele e dava um medo danado.
Tudo bem.
Dava muito mais medo no sonho.
Eu sei. Sonhos podem ser bem assustadores.
Por que foi que eu tive esse sonho assustador?
Não sei. Mas está tudo bem agora. Vou colocar um pouco de lenha na fogueira. E você vá dormir.
O menino não respondeu. Em seguida ele disse: O lugar de dar corda não estava funcionando.
Levou mais quatro dias para descer e sair da neve e mesmo então havia trechos com neve em certas curvas da estrada e a estrada estava preta e molhada da água que escorria das regiões mais altas mesmo depois dali. Contornaram a beira de um desfiladeiro profundo e lá embaixo, na escuridão, um rio. Ficaram parados escutando.
Altos penhascos rochosos na outra extremidade do desfiladeiro com árvores finas e negras agarrando-se à escarpa. O som do rio diminuiu. Depois retornou. Um vento frio soprando do campo lá embaixo. Estavam o dia inteiro tentando alcançar o rio.
Deixaram o carrinho num estacionamento e foram andando pela floresta. Um ruído grave vindo do rio. Era uma cachoeira que descia de uma alta parede de pedra e caía por 25 metros através de uma mortalha cinzenta de neblina no poço lá embaixo. Podiam sentir o cheiro da água e podiam sentir o frio se desprendendo dela. Um banco de cascalho molhado do rio. Ele ficou parado observando o menino. Uau, o menino disse. Não conseguia
tirar os olhos dali.
Ele se pôs de cócoras e pegou um punhado de pedras, cheirou-as e as deixou cair fazendo barulho. Polidas até ficarem redondas e lisas como mármore ou pastilhas de pedra raiadas e listradas. Pequeninos discos pretos e pedaços de quartzo polido, todos brilhando devido à garoa que se levantava do rio. O menino se adiantou e se pôs de cócoras e pegou com as mãos um pouco da água escura.
A cachoeira caía no poço quase no centro. Um coágulo cinzento a circundava. Ficaram lado a lado chamando um ao outro sobre o ruído.
Está fria?
Está. Está gelada.
Você quer entrar?
Não sei.
Claro que quer.
Tudo bem se eu entrar?
Vamos lá.
Ele abriu o zíper da parca, deixou-a cair sobre o cascalho e o menino se pôs de pé e eles se despiram e caminharam até a água. De uma palidez fantasmagórica e tremendo. O menino tão magro que ele sentiu um aperto no coração. Mergulhou de cabeça e reapareceu arquejando e se virou e ficou parado, batendo os braços.
Ela está em cima da minha cabeça? o menino
gritou.
Não. Venha.
Ele se virou e nadou até a cachoeira e deixou a água cair sobre ele com força. O menino estava de pé no poço com a água chegando à cintura, segurando os ombros e pulando para cima e para baixo. O homem voltou e pegou-o. Segurou-o e fez com que boiasse, o menino arquejando e se debatendo na água. Você está indo bem, o homem disse. Está indo bem.
Vestiram-se trêmulos e em seguida subiram a trilha até a parte de cima do rio. Caminharam junto às pedras até onde o rio parecia terminar no espaço e ele segurou o menino enquanto se aventurava até a última saliência da pedra. O rio passava lambendo a beira e caía diretamente no poço lá embaixo. O rio inteiro. Ele se agarrou ao braço do homem.
É bem alto, ele disse.
É bastante alto.
Você ia morrer se caísse?
Ia se machucar. E uma boa queda.
Dá um medo danado.
Caminharam pela floresta. A luz estava diminuindo. Seguiram os bancos de areia ao longo da parte superior do rio entre imensas árvores mortas. Uma fértil floresta do sul onde outrora havia limão-bravo e pipsissewa. Ginseng. Os galhos mortos e crus do rododendro retorcidos e cheios de nós e negros. Ele parou. Algo no tapete de vegetação morta e cinzas. Parou e apanhou-o. Uma pequena colônia deles, encolhidos, secos e enrugados. Ele apanhou um, segurou-o e cheirou. Mordeu a ponta de um deles e mastigou.
O que é, Papai?
Morchelas. São morchelas.
O que são morchelas?
Um tipo de cogumelo.
A gente pode comer?
Pode. Dá uma mordida.
São bons?
Dá uma mordida.
O menino cheirou o cogumelo e deu uma mordida e ficou mastigando. Olhou para o pai.