São bastante bons, ele disse.
Arrancaram os cogumelos do chão, coisinhas de aspecto estranho que ele empilhou no capuz da parca do menino.
Caminharam de volta até a estrada e desceram até onde tinham deixado o carrinho e acamparam junto ao poço do rio perto da cachoeira e lavaram a terra e as cinzas que havia nos cogumelos e os colocaram de molho numa panela d’água.
Quando ele acendeu a fogueira estava escuro e ele fatiou um punhado de cogumelos num toco de madeira para o jantar e os colocou na frigideira junto com a carne de porco gorda de uma lata de feijões e colocou-os sobre o carvão para ferver. O menino o observava. Este é um bom lugar, Papai, ele disse.
Comeram os pequenos cogumelos junto com os feijões e beberam chá e comeram pêras em conserva de sobremesa. Ele abafou a fogueira na fenda de rocha onde a tinha acendido, amarrou a lona atrás deles para refletir o calor e se sentaram aquecidos em seu refúgio enquanto ele contava histórias para o menino. Velhas histórias de coragem e justiça do modo como se lembrava delas até que o menino adormeceu em meio às suas cobertas e então ele alimentou o fogo e se deitou aquecido, de barriga cheia, e ficou ouvindo o trovejar distante das cachoeiras para além de onde estavam naquela mata escura e velha.
Ele saiu de manhã e seguiu pelo caminho do rio, descendo a correnteza. O menino tinha razão, aquele era um bom lugar e ele queria conferir se havia algum sinal de outros visitantes. Não encontrou nada. Ficou observando o rio onde ele se lançava num poço e depois se encrespava e formava redemoinhos. Atirou uma pedra branca na água mas ela desapareceu tão rapidamente quanto se tivesse sido engolida. Tinha estado junto a um rio desses outrora e observado o movimento fugaz das trutas no fundo de um poço, invisível de se ver naquela água cor de chá, exceto quando se viravam de lado para se alimentar. Refletindo o sol no fundo da escuridão como o lampejo de facas numa caverna.
Não podemos ficar, ele disse. Está ficando mais frio a cada dia. E a cachoeira é uma atração. Foi para nós e será para outros e não sabemos quem serão esses outros e não podemos ouvi-los chegando. Não é seguro.
A gente podia ficar mais um dia.
Não é seguro.
Bem, talvez a gente pudesse encontrar algum outro lugar no rio.
Temos que continuar seguindo em frente. Temos que continuar indo na direção sul.
O rio não vai na direção sul?
Não. Não vai.
Posso ver no mapa?
Pode. Deixa eu pegar.
O surrado mapa da companhia de petróleo tinha sido outrora consertado com fita adesiva mas agora estava apenas organizado em folhas e numerado com giz de cera nos cantos para poderem juntá-lo. Ele procurou entre as páginas moles e estendeu aquelas que correspondiam à sua localização.
Atravessamos uma ponte aqui. Parece ficar a uns doze quilômetros ou coisa assim. Este é o rio. Indo para oeste. Seguimos a estrada aqui ao longo da encosta oriental das montanhas. Estas são as nossas estradas, as linhas pretas no mapa. As estradas estaduais.
Por que são estradas estaduais?
Porque antes pertenciam aos estados. Ao que chamávamos de estados.
Mas não existem mais estados?
Não.
O que aconteceu com eles?
Não sei ao certo. E uma boa pergunta.
Mas as estradas ainda estão aí.
Sim. Por algum tempo.
Por quanto tempo?
Não sei. Talvez um bom tempo. Não há nada para destruí-las, então devem ficar em bom estado por um tempo.
Mas carros e caminhões não vão passar nelas.
Não.
Certo.
Você está pronto?
O menino fez que sim. Enxugou o nariz na manga e colocou no ombro sua pequena mochila e o homem dobrou as seções do mapa e se levantou e o menino o seguiu em meio às estacas cinzentas das árvores até a estrada.
Quando conseguiram divisar a ponte abaixo deles havia um caminhão atravessado nela e enfiado no parapeito de ferro empenado. Estava chovendo outra vez e eles ficaram ali parados com a chuva tamborilando de leve na lona. Espiando de dentro da penumbra azulada por baixo do plástico.
A gente não pode contornar? o menino disse.
Acho que não. Podemos provavelmente passar por baixo dele. Talvez tenhamos que esvaziar o carrinho.
A ponte transpunha o rio sobre corredeiras. Puderam ouvir o barulho quando fizeram a curva na estrada. Da garganta soprava um vento e eles puxaram as pontas da lona ao redor deles e empurraram o carrinho até a ponte. Podiam ver o rio através das ferragens. Mais abaixo das corredeiras havia a ponte de uma ferrovia construída sobre pilares de calcário. As pedras dos pilares estavam manchadas bem acima da altura do rio devido às cheias e a curva estava obstruída com enormes pilhas de galhos negros e folhagens e troncos de árvores.
Havia anos que o caminhão estava ali, os pneus vazios e enrugados sob os aros. A parte da frente estava comprimida contra o parapeito da ponte e a caçamba tinha se soltado da base e se projetado para a frente, comprimindo a parte de trás da cabine. A traseira da caçamba tinha sido arremessada e vergado por cima do parapeito do outro lado da ponte e estava pendurada vários metros para fora sobre a garganta do rio. Ele empurrou o carrinho por baixo da caçamba mas a barra de empurrar não passava. Teriam que fazê-lo deslizar por baixo, deitado de lado. Deixaram-no ali, sob a chuva, com a lona por cima, passaram por baixo da caçamba e ele deixou o menino agachado ali no seco enquanto subia no degrau do tanque de gasolina e enxugava a água do vidro e espiava dentro da cabine. Voltou a descer o degrau, estendeu o braço e abriu a porta, em seguida subiu e fechou a porta depois de entrar. Ficou sentado olhando ao redor. Um velho leito atrás dos assentos. Papéis no chão. O porta-luvas estava aberto, mas vazio. Ele subiu de volta por entre os assentos. Havia um colchão tosco e úmido no beliche e uma pequena geladeira com a porta aberta. Uma mesa dobrável. Revistas velhas no chão. Ele vasculhou os compartimentos de compensado no alto mas estavam vazios. Havia gavetas sob o beliche e ele as abriu e vasculhou em meio ao lixo. Subiu de volta na cabine e se sentou no banco do motorista e olhou para fora, para o rio lá embaixo através dos pingos que escorriam lentamente no vidro. O tamborilar suave da chuva no teto de metal e a escuridão descendo devagar sobre todas as coisas.
Dormiram aquela noite no caminhão, pela manha a chuva tinha parado e descarregaram o carrinho e passaram tudo por baixo do veículo até o outro lado e colocaram as coisas de volta. Depois da ponte a uns trinta metros mais ou menos havia os restos enegrecidos de pneus que tinham sido queimados ali. Ele ficou parado olhando para a caçamba. O que você acha que há lá dentro?
Não sei.
Não somos os primeiros aqui. Então provavelmente nada.
Não tem como entrar.
Ele colocou o ouvido na lateral do compartimento e deu um tapa no metal laminado com a palma da mão. Pelo som parece vazio, disse. Provavelmente dá para entrar pelo teto. Alguém deve ter aberto um buraco na lateral a essa altura.
Com o que eles iam cortar?
Encontrariam alguma coisa.
Ele tirou a parca e a colocou no alto do carrinho e subiu no pára-lama do caminhão e depois na capota e subiu com dificuldade no teto da cabine. Ficou de pé, virou-se e olhou para o rio lá embaixo. Metal molhado debaixo dos pés. Olhou lá para baixo, para o menino. O menino parecia preocupado. Ele se virou, estendeu a mão e agarrou a frente da caçamba e se ergueu devagar. Era tudo o que podia fazer e havia bem menos volume em seu corpo para puxar. Passou uma perna por cima da beirada e ficou ali descansando. Então se ergueu e rolou por cima da beirada e se sentou.
Havia uma claraboia a cerca de um terço do caminho ao descer do teto e ele foi até lá andando agachado. A cobertura tinha sumido e o interior da caçamba cheirava a compensado úmido e àquele odor azedo que ele tinha vindo a conhecer. Ele levava uma revista no bolso junto ao quadril, pegou-a, arrancou algumas páginas e fez um chumaço, pegou seu isqueiro e pôs fogo nos papéis e jogou-os na escuridão. Um suave sibilar. Ele afastou com a mão a fumaça e olhou para o interior do compartimento. A fogueirinha queimando no chão parecia estar muito afastada. Ele se protegeu do clarão com a mão e quando fez isso pôde enxergar quase até o fundo da caçamba. Corpos humanos. Escarrapachados em todas as posturas. Secos e murchos em suas roupas podres. O pequeno chumaço de papel queimando se reduziu a um lampejo de chama e então se extinguiu deixando uma forma suave durante um breve instante na incandescência como o contorno de uma flor, uma rosa derretida. Então tudo ficou escuro outra vez.