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Naquela noite acamparam na floresta, numa serrania que dava para uma vasta planície ao sopé de uma montanha, que se estendia para o sul. Acendeu uma fogueira para cozinhar junto a uma rocha e comeram o que restava dos cogumelos e uma lata de espinafre. Durante a noite uma tempestade caiu sobre as montanhas acima deles e veio re

tumbando ao descer, estalando e estrondeando e o mundo

de um cinza inflexível aparecia repetidas vezes no meio da noite, no lampejo amortalhado do relâmpago. O menino se agarrava a ele. A tempestade ia avançando. O breve estrépito do granizo e em seguida a chuva fria e vagarosa.

Quando ele acordou outra vez ainda estava escuro, mas a chuva tinha parado. Uma luz esfumaçada lá adiante no vale. Ele acordou e caminhou lá para fora na serrania. Uma névoa de fogo que se estendia por quilômetros. Ele se agachou e a observou. Podia sentir o cheiro da fumaça.

Umedeceu o dedo e ergueu-o contra o vento. Quando se levantou e se virou para voltar, a lona mostrava uma luz vinda do lado de dentro, onde o menino tinha acordado. Ali na escuridão sua sombra frágil e azulada parecia o pico de alguma última ventura nas bordas do mundo. Alguma coisa que quase não podia ser contabilizada. E era isso de fato.

Durante todo o dia seguinte eles viajaram através do nevoeiro criado pela fumaça das árvores, que ia sendo levado pelo vento. Nas bordas a fumaça saindo do chão como neblina e as árvores finas e pretas queimando nas encostas como candelabros de velas pagãs. Tarde naquele dia eles chegaram a um lugar onde o fogo tinha atravessado a estrada e o macadame ainda estava morno e mais adiante começou a ficar macio sob os pés. O piche negro e quente grudando em seus sapatos e se esticando em faixas delgadas conforme eles andavam. Pararam. Vamos ter que esperar, ele disse.

Voltaram pelo mesmo caminho e acamparam na própria estrada e quando seguiram em frente pela manhã o macadame tinha esfriado. Um pouco depois chegaram a um conjunto de marcas feitas no asfalto. Simplesmente apareceram, de um momento para o outro. Ele se pôs de cócoras e as estudou. Alguém tinha saído da floresta durante a noite e continuado pela estrada derretida.

Quem é? disse o menino.

Não sei. Quem é alguém?

Deram com ele caminhando devagar pela estrada diante deles, puxando ligeiramente uma perna e parando de tempos em tempos para ficar ali, recurvado e incerto, antes de seguir em frente outra vez.

O que é que a gente devia fazer, Papai?

Nada, por enquanto. Vamos só seguir e observar.

Dar uma olhada, o menino disse.

E. Dar uma olhada.

Seguiram-no durante um bom tempo mas na velocidade dele estavam perdendo o dia e por fim ele simplesmente se sentou na estrada e não se levantou mais. O menino se segurava no casaco do pai. Ninguém falou. Ele parecia tão queimado quanto o resto da paisagem, suas roupas chamuscadas e pretas. Um de seus olhos estava fechado devido às queimaduras e seu cabelo não passava de uma peruca piolhenta de cinzas sobre o crânio enegrecido. Quando passaram ele baixou os olhos. Como se tivesse feito algo de errado. Seus sapatos estavam amarrados com arame e envolvidos com asfalto e ele se sentava ali em silêncio, curvado sobre seus trapos. O menino continuava olhando para trás. Papai? ele perguntou. O que há de errado com esse homem?

Um raio caiu nele.

Nao podemos ajudar ele? Papai?

Não. Não podemos ajudar ele.

O menino continuava puxando seu casaco. Papai? ele disse.

Pare.

Não podemos ajudar ele Papai?

Não. Não podemos ajudar ele. Não há nada que possa ser feito por ele.

Seguiram adiante. O menino chorava. Continuava olhando para trás. Quando chegaram ao pé do morro o homem parou e olhou para ele e olhou para cima, para a estrada lá atrás. O homem queimado tinha caído e àquela distância nem era possível dizer do que se tratava. Eu sinto muito, ele disse. Mas não temos nada a oferecer para ele. Não temos como ajudá-lo. Sinto muito pelo que aconteceu com ele mas não podemos consertar. Você sabe disso, não sabe? O menino ficou parado olhando para baixo. Fez que sim com a cabeça. Então eles seguiram em frente e ele não voltou a olhar para trás.

À noite um brilho embaçado cor de enxofre vindo das árvores. A água parada nas valas de beira de estrada negras com a água que escorria das montanhas. As montanhas encobertas. Atravessaram o rio numa ponte de concreto onde meadas de cinzas e dejetos desciam devagar com a correnteza. Pedaços carbonizados de madeira. No fim, pararam e fizeram meia-volta e acamparam debaixo da ponte.

Ele carregara sua carteira até que ela fizesse um buraco nas calças. Então um dia se sentou à beira da estrada e a tirou e examinou seu conteúdo. Algum dinheiro, cartões de crédito. Sua carteira de motorista. Uma fotografia de sua mulher. Espalhou tudo por cima do pavimento. Como cartas de baralho. Arremessou a peça de couro, enegrecida pelo suor, dentro da floresta, e ficou sentado olhando para a fotografia. Então colocou-a sobre a estrada também e se levantou e seguiram em frente.

Pela manhã estava deitado olhando para os ninhos de argila que as andorinhas tinham construído nos cantos debaixo da ponte. Olhou para o menino mas o menino tinha se virado de lado e olhava para o rio, deitado.

Não há nada que nós pudéssemos ter feito.

Ele não respondeu.

Ele vai morrer. Não podemos dividir o que temos senão vamos morrer também.

Eu sei.

Então quando é que você vai voltar a falar comigo?

Estou falando agora.

Tem certeza?

Sim.

Está bem.

Está bem.

Ficaram de pé junto à margem mais afastada de um rio e chamaram-no. Deuses esfarrapados caminhando recurvados em seus trapos pela desolação. Andando pelo solo seco de um mar mineral onde este jazia rachado e partido como um prato que tivesse caído no chão. Trilhas de fogo feroz na areia coagulada. Os vultos indistintos à distância. Ele acordou e ficou ali deitado na escuridão.

Os relógios pararam à lhl7. Um longo clarão e depois uma série de pequenos abalos. Ele se levantou e foi até a janela. O que foi? ela disse. Ele não respondeu. Foi até o banheiro e ligou o interruptor mas a energia já se fora. Um brilho opaco e rosado no vidro da janela. Ele caiu sobre um dos joelhos e puxou a alavanca para tampar a banheira e depois abriu as duas torneiras ao máximo. Ela estava de pé junto à porta de camisola, segurando-se no batente, embalando a barriga com uma das mãos. O que foi? ela disse. O que está acontecendo?

Não sei.

Por que você vai tomar banho?

Não vou.

Uma vez naqueles primeiros anos ele tinha acordado numa floresta árida e ficado deitado ouvindo os bandos de aves migratórias lá em cima naquela escuridão dolorosa. Seus pios semi-abafados a quilômetros de distância lá no alto onde elas circundavam a terra de modo tão insensato quanto insetos se agrupando na beira de uma tigela. Desejou-lhes felicidades até que se foram. Nunca mais voltou a ouvi-las.

Tinha um baralho que encontrara na gaveta de uma escrivaninha numa casa e as cartas estavam velhas e furadas e duas cartas do naipe de paus estavam faltando mas mesmo assim eles jogavam de vez em quando à luz da fogueira enrolados nos cobertores. Ele tentava se lembrar das regras de velhos jogos da infância. Mico. Alguma versão do uíste. Tinha certeza de que estava jogando errado e inventava novos jogos e lhes dava nomes inventados. Fescue Anormal ou Catbarf. Às vezes o menino lhe fazia perguntas sobre o mundo que para ele não era sequer uma lembrança. Ele achava difícil responder. Não há passado. Do que você gostaria? Mas parou de inventar coisas porque essas coisas também não eram verdadeiras e contá-las fazia com que ele se sentisse mal. O menino tinha suas próprias fantasias. Como as coisas seriam no sul. Outras crianças. Ele tentava refreá-lo mas seu coração não estava presente nessa tentativa. Será que o coração de alguém estaria?