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Nenhuma lista de coisas a fazer. O dia providencial a si mesmo. A hora. Não existe o mais tarde. Agora é mais tarde. Todas as coisas graciosas e belas como as que se levam guardadas no coração têm uma origem comum na dor. Nascem do pesar e das cinzas. Então, ele sussurrou para o menino adormecido. Tenho você.

Pensou na fotografia na estrada e achou que devia ter tentado mantê-la em suas vidas de algum modo mas não sabia como. Acordou tossindo e foi lá para fora de modo a não acordar o menino. Acompanhando um muro de pedra na escuridão, embrulhado no cobertor, ajoelhando-se nas cinzas como um penitente. Tossiu até conseguir sentir o gosto do sangue e disse o nome dela em voz alta. Pensou que talvez o tivesse dito enquanto dormia. Quando voltou o menino tinha acordado. Me desculpe, ele disse.

Tudo bem.

Vá dormir.

Eu queria estar com a mamãe.

Ele não respondeu. Sentou-se ao lado do vulto pequenino embrulhado nas colchas e nos cobertores. Depois de algum tempo ele disse: Você quer dizer que queria estar morto.

É.

Você não deve dizer isso.

Mas eu queria.

Não diga isso. E uma coisa ruim de se dizer.

Não dá para evitar.

Eu sei. Mas tem que evitar.

Como é que eu faço isso?

Não sei.

Somos sobreviventes ele disse a ela por cima da chama da lamparina.

Sobreviventes? ela disse.

Sim.

Do que em nome de Deus você está falando? Não somos sobreviventes. Somos os mortos-vivos num filme de terror.

Eu estou te implorando.

Não ligo. Não ligo se você chorar. Não significa nada para mim.

Por favor.

Pare com isso.

Estou te implorando. Faço qualquer coisa.

Como o quê? Eu devia ter feito isso há muito tempo. Quando havia três balas na arma em vez de duas. Fui uma idiota. Já falamos sobre tudo isso. Não fui eu que me forcei a isso. Fui forçada. E agora chega para mim. Pensei em nem te dizer. Isso provavelmente teria sido melhor. Você tem duas balas e então o quê? Não pode nos proteger. Diz que morreria por nós mas de que adianta? Eu o levaria comigo se não fosse por você. Você sabe que levaria. E a coisa certa a fazer.

Você está dizendo bobagem.

Não, estou falando a verdade. Mais cedo ou mais tarde vão nos pegar e nos matar. Vão me estuprar. Vão estuprá-lo. Vão nos estuprar e nos matar e nos comer e você não quer encarar isso. Prefere esperar que aconteça. Mas eu não posso. Não posso. Ela ficou sentada fumando um pedaço comprido de videira seca como se fosse algum charuto raro. Segurando-o com certa elegância, a outra mão sobre os joelhos onde ela os havia juntado. Ela o observava através da pequena chama. Costumávamos falar da morte, ela disse. Não falamos mais. Por que isso?

Não sei.

E porque ela está aqui. Não há mais nada para

falar.

Eu não te deixaria.

Não me importo. Não quer dizer nada. Pode pensar que eu sou uma puta infiel se quiser. Tenho um novo amante. Ele me dá o que você não consegue dar.

A morte não é um amante.

Ah é sim.

Por favor não faça isso.

Sinto muito.

Não consigo fazer isso sozinho.

Então não faça. Não posso te ajudar. Dizem que as mulheres sonham com o perigo daqueles que estão sob seus cuidados e os homens com seu próprio perigo. Mas eu não sonho com nada. Você diz que não consegue fazer isso sozinho? Então não faça. E tudo. Porque eu estou exausta deste meu coração libertino e isso já faz muito tempo. Você fala sobre tomar uma posição firme mas não há posição a tomar. Meu coração foi arrancado de mim na noite em que ele nasceu então não peça por um lamento agora. Não há nenhum. Talvez você venha a ser bom nisso. Eu duvido, mas quem sabe. A única coisa que eu posso te dizer é que você não vai sobreviver por conta própria. Eu sei porque eu nunca teria chegado tão longe. A uma pessoa que não tivesse ninguém seria aconselhável que se juntasse a algum fantasma passável. Trazê-lo à

vida com seu sopro e persuadi-lo a seguir em frente com

palavras de amor. Oferecer-lhe cada migalha fantasma e protegê-lo do perigo com seu corpo. Quanto a mim minha única esperança é o nada eterno e espero por ele com todo meu coração.

Ele não respondeu.

Você não tem nenhum argumento porque não existe um.

Você vai dizer adeus a ele?

Não. Não vou.

Só espere até de manhã. Por favor.

Tenho que ir.

Ela já tinha se levantado.

Pelo amor de Deus, mulher. O que eu digo a ele?

Não posso te ajudar.

Para onde você vai? Você não consegue nem mesmo enxergar.

Não preciso.

Ele se levantou. Estou te implorando, ele disse.

Não. Não vou. Não posso.

Ela se foi e a frieza do gesto foi seu último presente. Usaria uma lasca de obsidiana. Ele mesmo lhe ensinara. Mais afiado do que o aço. A ponta com a espessura de um átomo. E ela estava certa. Não havia argumento. A centena de noites em que eles tinham ficado sentados debatendo os prós e os contras da autodestruição com a honestidade de filósofos acorrentados à parede de um hospício. Pela manhã o menino não disse nada em absoluto, e quando eles tinham guardado suas coisas e estavam prontos para pôr o pé na estrada ele se virou e olhou para o local de seu acampamento lá atrás e disse: Ela foi embora não foi? E ele disse: Sim, foi.

Sempre tão deliberado, mal chegando a se surpreender com os eventos mais inusitados. Uma criação perfeitamente evoluída para alcançar seu próprio fim. Sentaram-se à janela e fizeram uma refeição à meia-noite vestindo seus robes à luz de velas e observaram cidades distantes queimando. Algumas noites mais tarde ela deu à luz na cama deles, sob a iluminação de uma lanterna a pilha. Luvas que serviam para lavar pratos. A aparência improvável da pequena coroa da cabeça. Listrado de sangue e cabelo preto e escorrido. O fedor do mecônio. Os gritos dela não significavam nada para ele. Para além da janela apenas o frio que aumentava, os incêndios no horizonte. Ele se debruçou sobre o corpo esquelético e vermelho tão tosco e nu e cortou o cordão com uma tesoura de cozinha e embrulhou seu filho numa toalha.

Você tinha algum amigo?

Sim. Tinha.

Muitos?

Sim.

Você se lembra deles?

Sim. Eu me lembro deles.

O que aconteceu com eles?

Morreram.

Todos eles?

Sim. Todos eles.

Você sente falta deles?

Sim. Sinto.

Para onde a gente vai?

Vamos para o sul.

Está bem.

Ficaram o dia todo na comprida estrada preta, parando à tarde para comer um pouco de seus magros suprimentos. O menino tirou seu caminhão da mochila e desenhou estradas sobre as cinzas usando uma vareta. O caminhão avançou por elas devagar. Ele fazia ruídos de caminhão. O dia parecia quase quente e eles dormiram sobre as folhas com as mochilas debaixo da cabeça.

Alguma coisa o despertou. Ele se virou de lado e se pôs a escutar. Ergueu a cabeça devagar, o revólver na mão. Baixou os olhos para o menino e quando olhou de volta na direção da estrada os primeiros deles já estavam visíveis. Deus, ele sussurrou. Estendeu a mão e sacudiu o menino, sem tirar os olhos da estrada. Eles vinham arrastando os pés pelas cinzas jogando as cabeças encapuzadas para um lado e para o outro. Alguns usando máscaras de gás. Um deles com uma roupa de proteção contra agentes químicos e biológicos. Manchados e imundos. Andando recurvados com porretes nas mãos, pedaços de cano. Tossindo. Então ele ouviu na estrada atrás dele o que parecia ser um caminhão a diesel. Rápido, sussurrou. Rápido. Empurrou o revólver para dentro do cinto e agarrou o menino pela mão e arrastou o carrinho através das árvores e inclinou-o de um jeito que ele não fosse tão facilmente visto. O menino estava paralisado de medo. Ele o puxou contra si. Está tudo bem, disse. Temos que correr. Não olhe para trás. Venha.