Nem sempre, disse o grito silencioso. Antes do corvo não tinha.
Farejou a casca da árvore, tinha cheiro de lobo, árvore e garoto, mas por trás desses odores havia outros, o cheiro rico e marrom da terra tépida, e o duro e cinza da pedra, e algo mais, algo terrível. Morte, compreendeu. Estava cheirando a morte. Retraiu-se, com o pelo eriçado, e mostrou os dentes.
Não tenha medo, eu gosto do escuro. Ninguém o vê, mas você vê todo mundo. Mas primeiro tem de abrir os olhos. Vê? Assim. E a árvore estendeu um galho e tocou nele.
E de repente estava de volta nas montanhas, com as patas profundamente enterradas em neve soprada pelo vento, à beira de um grande precipício. À sua frente, o Passo dos Guinchos abria-se numa amplidão arejada, e um longo vale em forma de V espalhava-se abaixo como uma colcha, inundado por todas as cores de uma tarde de Outono.
Uma vasta muralha azul-esbranquiçada encobria uma das extremidades do vale, espremida entre as montanhas como se as tivesse afastado com os ombros, e por um momento pensou que estava de volta a Castelo Negro. Então compreendeu que estava olhando para um rio de gelo com mais de mil metros de altura. Na base desse resplandecente penhasco de gelo havia um grande lago, cujas profundas águas cor de cobalto refletiam os picos cobertos de neve que o rodeavam. Via agora que havia homens no vale; muitos, milhares deles, uma tropa enorme. Alguns faziam grandes buracos no terreno meio gelado, enquanto outros treinavam para a guerra. Observou uma multidão de cavaleiros investindo contra uma muralha de escudos, montados em cavalos que não eram maiores do que formigas. O som daquela batalha de mentira era um restolhar de folhas de aço, que flutuava, tênue, soprado pelo vento. O acampamento não tinha um plano; não viu valas, nem estacas afiadas, nem fileiras ordenadas de cavalos. Abrigos de terra improvisados e tendas de pele brotavam ao acaso por toda parte, como feridas de varíola na face na terra. Observou montes desordenados de feno, sentiu o cheiro de cabras e ovelhas, cavalos e porcos, cães em grande profusão. Fiapos de fumaça escura erguiam-se de um milhar de fogueiras de cozinha.
Isso não é mais um exército do que é uma vila. É um monte de gente que se juntou.
Do outro lado do grande lago, um dos montes se mexeu. Observou-o com mais atenção e viu que não era terra, mas uma coisa viva, um animal hirsuto e pesado, com uma serpente no lugar do nariz e presas maiores do que as do maior javali que alguma vez já viveu. E a coisa que o montava era também enorme, com uma silhueta errada, larga demais nas pernas e ancas para ser um homem.
Então, uma súbita rajada de vento frio fez com que seu pelo se eriçasse, e o ar vibrou com o som de asas. Ao levantar os olhos para a montanha branca como gelo, uma sombra precipitou-se do céu. Um grito estridente cortou o ar. Vislumbrou pontas de asas azul-acinzentadas muito abertas, escondendo o sol…
– Fantasma! – Jon gritou, sentando-se. Ainda sentia as garras, a dor. – Fantasma, aqui!
Ebben apareceu, agarrou-o, e o sacudiu.
– Silêncio! Quer fazer com que os selvagens caiam sobre nós? O que acontece contigo, rapaz?
– Um sonho – disse Jon com uma voz débil. – Eu era o Fantasma, estava na borda de uma montanha olhando para baixo, para um rio congelado, e alguma coisa me atacou. Uma ave… uma águia, acho…
O Escudeiro Dalbridge sorriu:
– Nos meus sonhos são sempre mulheres bonitas. Gostaria de sonhar mais vezes.
Qhorin aproximou-se:
– Falou de um rio gelado?
– O Guadeleite nasce num grande lago no sopé de um glaciar – informou Cobra das Pedras.
– Havia uma árvore com o rosto do meu irmão. Os selvagens… eram milhares, mais do que eu pensava que pudesse existir. E gigantes montados em mamutes – julgando pelo modo como a luz havia mudado, Jon calculou ter dormido quatro ou cinco horas. Doíam sua cabeça e sua nuca, onde as garras tinham queimado o interior da carne. Mas isso foi no sonho.
– Conte-me tudo aquilo de que se lembrar, do início ao fim – Qhorin Meia-Mão pediu.
Jon ficou confuso.
– Foi só um sonho.
– Um sonho de lobo – disse Meia-Mão. – Craster disse ao Senhor Comandante que os selvagens estavam se reunindo na nascente do Guadeleite. Pode ser por isso que teve esse sonho. Ou pode ser que tenha visto aquilo que nos espera, algumas horas mais à frente. Conte.
Jon sentiu-se meio tolo por falar daquelas coisas a Qhorin e aos outros patrulheiros, mas fez o que lhe era ordenado. No entanto, nenhum dos irmãos negros riu dele. Quando acabou, até o Escudeiro Dalbridge tinha perdido o sorriso.
– Troca-peles? – sugeriu Ebben em tom sombrio, olhando para Meia-Mão. Está falando da águia?, Jon perguntou a si mesmo. Ou de mim? O lugar dos troca-peles e wargs eram as histórias da Velha Ama, não o mundo onde tinha vivido toda a vida. Mas ali, naquela estranha e erma região de rocha e gelo, não era difícil acreditar.
– Os ventos frios estão se levantando. Era o que Mormont temia. Benjen Stark também sentia isso. Os mortos caminham e as árvores voltaram a ter olhos. Por que deveríamos descrer de wargs e gigantes?
– Isso quer dizer que os meus sonhos também são reais? – perguntou o Escudeiro Dalbridge. – Lorde Snow pode ficar com os seus mamutes, eu quero as minhas mulheres.
– Servi na Patrulha quando homem e rapaz, e fui tão longe em patrulha como qualquer outro – Ebben voltou a falar. – Vi os ossos de gigantes, e ouvi muitas histórias estranhas, mas nada mais. Quero vê-los com meus próprios olhos.
– Tome cuidado para que não o vejam, Ebben – Cobra das Pedras alertou-o.
Fantasma não retornou antes de voltarem a se pôr em marcha. Nessa altura, as sombras já cobriam o fundo do passo, e o sol afundava-se rapidamente na direção dos recortados picos gêmeos da enorme montanha que os patrulheiros chamavam de Ponta de Forquilha. Se o sonho tiver sido real… Até a ideia assustava Jon. Seria possível que a águia tivesse machucado Fantasma? Poderia tê-lo atirado ao precipício? E o represeiro com o semblante do irmão, que tinha cheiro de morte e escuridão?
O último raio de sol desapareceu atrás dos picos da Ponta de Forquilha. O ocaso encheu o Passo dos Guinchos. Pareceu ficar mais frio quase de imediato. Já não subiam. Na verdade, o terreno começava a descer, ainda que por enquanto não muito. Estava repleto de fendas, pedregulhos e pilhas de pedra caída. Em breve ficará escuro, e ainda não há sinal do Fantasma. Aquilo estava acabando com Jon, mas não se atrevia a gritar pelo lobo gigante como gostaria de fazer. Outras coisas também podiam estar à escuta.
– Qhorin – chamou o Escudeiro Dalbridge em voz baixa. – Ali. Olha.
A águia estava empoleirada num espinhaço de rocha muito acima deles, delineada contra o céu que escurecia. Vimos outras águias, Jon pensou. Aquela não precisa ser a que vi em meu sonho.
Mesmo assim, Ebben queria atirar uma flecha nela, mas o escudeiro o impediu.
– A ave está muito além do alcance do arco.
– Não gosto de vê-la nos observando.
O escudeiro encolheu os ombros.
– Nem eu, mas você não vai impedi-la. Só vai desperdiçar uma boa flecha.
Qhorin ficou parado, estudando a águia durante muito tempo.
– Avançamos – ele disse por fim. Os patrulheiros reataram a descida.
Fantasma, Jon quis gritar, cadê você?
Preparava-se para seguir Qhorin e os outros quando vislumbrou um relâmpago branco entre dois pedregulhos. Um montículo de neve velha, pensou, até que a viu agitar-se. Saltou do cavalo na hora. No momento em que se ajoelhou, Fantasma levantou a cabeça. Seu pescoço cintilava, úmido, mas não soltou um som quando Jon tirou uma luva e o tocou. As garras tinham aberto um caminho sangrento através de pelo e carne, mas a ave não tinha sido capaz de quebrar seu pescoço.