– Eles me desafiaram! – Theon gritou no rosto dela. – E, além disso, foi sangue por sangue, dois filhos de Eddard Stark em troca de Rodrik e Maron – as palavras jorraram sem pensar, mas Theon soube de imediato que o pai aprovaria. – Dei descanso aos fantasmas de meus irmãos.
– De nossos irmãos – recordou-lhe Asha, com um meio sorriso que sugeria que dava um bom desconto àquela conversa de vingança. – Trouxe os fantasmas deles de Pyke, mano? E eu que pensava que só assombravam o pai.
– Desde quando as donzelas compreendem a necessidade de vingança de um homem? – mesmo se o pai não gostasse de receber Winterfell de presente, tinha de aprovar que Theon vingasse os irmãos.
Asha segurou uma gargalhada com uma fungadela.
– Já passou por sua cabeça que esse Sor Rodrik pode bem alimentar a mesma necessidade viril? É sangue do meu sangue, Theon, independentemente do que seja além disso. Por amor à mãe que nos teve, volte comigo para Bosque Profundo. Entregue Winterfell ao archote e se retire enquanto ainda pode.
– Não – Theon ajustou a coroa. – Tomei este castelo, e pretendo mantê-lo.
A irmã o olhou durante muito tempo.
– Então vai mantê-lo durante o resto de sua vida – ela suspirou. – Eu digo que isso cheira a loucura, mas o que sabe uma tímida donzela dessas coisas? – já na porta, dirigiu-lhe um último sorriso zombeteiro. – Acho que devia saber que essa é a coroa mais feia que já vi. Foi você que fez?
Deixou-o furioso, e não permaneceu no castelo mais do que o tempo necessário para dar de comer e beber aos cavalos. Metade dos homens que trouxera voltaram com ela, como avisara, atravessando o mesmo Portão do Caçador que Bran e Rickon tinham usado para a fuga.
Theon os viu partir da muralha. Enquanto a irmã desaparecia na névoa da mata de lobos, deu por si interrogando-se sobre o motivo por que não a tinha escutado e partido com ela.
– Ela foi embora, é? – Fedor estava junto ao seu lado.
Theon não o ouvira chegar, e também não sentira o seu cheiro. Não era capaz de imaginar alguém que quisesse ver menos. Sentia-se desconfortável vendo o homem andar por aí, respirando, com tudo o que sabia. Devia ter mandado matá-lo depois de ele ter cuidado dos outros, refletiu, mas a ideia o deixava nervoso. Por improvável que parecesse, Fedor sabia ler e escrever, e possuía suficiente astúcia servil para ter escondido um relato do que tinham feito.
– Senhor príncipe, com a sua licença, não tá certo que ela o abandone. E dez homens, isso não vai adiantar, nem de longe.
– Estou bem consciente disso – ele respondeu. E Asha também está.
– Bom, pode ser que possa ajudá-lo. Dê-me um cavalo e um saco de moedas e talvez lhe arranje uns tipos bons.
Theon estreitou os olhos.
– Quantos?
– Pode ser que uns cem. Ou duzentos. Talvez mais – Fedor sorriu, com os olhos claros cintilando. – Nasci aqui pro norte. Conheço muito homem, e muito homem conhece Fedor.
Duzentos homens não eram um exército, mas não seriam necessários milhares para defender um castelo tão forte como Winterfell. Desde que fossem capazes de aprender qual das pontas da lança matava, podiam fazer a diferença.
– Faça isso que diz, e não vai me achar ingrato. Pode dizer que recompensa quer.
– Bom, senhor, não tenho mulher desde que estava com Lorde Ramsay. Tô de olho naquela Palla, e ouvi dizer que ela já teve com um homem, então…
Tinha ido longe demais com Fedor para recuar agora.
– Duzentos homens e ela é sua. Mas, um homem a menos, e pode voltar a foder porcos.
Fedor partiu antes do pôr do sol, levando um saco da prata dos Stark e a última das esperanças de Theon. O mais certo é que não volte a ver o maldito homem, pensou amargamente, mas, mesmo assim, o risco tinha de ser corrido.
Nessa noite sonhou com o banquete que Ned Stark tinha organizado quando o Rei Robert veio a Winterfell. O salão ressoava com música e risos, embora os ventos frios estivessem subindo lá fora. A princípio era tudo vinho e carne assada, e Theon trocava gracejos, admirava as criadas e passava um tempo agradável… Até reparar que a sala estava ficando mais escura. A música já não parecia tão alegre; ouviu dissonâncias e estranhos silêncios, e notas que pairavam, sangrando, no ar. De repente, o vinho amargou em sua boca, e quando ergueu os olhos da taça viu que estava jantando com os mortos.
O Rei Robert estava sentado com as tripas derramadas sobre a mesa, saídas do grande rasgo que tinha na barriga, e Lorde Eddard encontrava-se ao seu lado, sem cabeça. Cadáveres ocupavam os bancos, embaixo, com carne marrom-acinzentada desprendendo-se dos ossos ao erguerem as taças para brindar, e vermes rastejando para dentro e para fora dos buracos que tinham sido seus olhos. Conhecia todos; Jory Cassel e o Gordo Tom, Porther, Cayn e Hullen, o mestre dos cavalos, e todos os outros que tinham partido para Porto Real para nunca regressar. Mikken e Chayle estavam juntos, um pingando sangue, e o outro, água. Benfred Tallhart e as suas Bravas Lebres enchiam a maior parte de uma mesa. A mulher do moleiro também estava lá, e Farlen, e até o selvagem que Theon matou na mata de lobos no dia em que salvara a vida de Bran.
Mas havia outros, com rostos que nunca conhecera em vida, rostos que vira apenas em pedra. A esbelta e triste moça que usava uma coroa de rosas azuis-claras e um vestido branco salpicado de sangue coagulado só podia ser Lyanna. O irmão Brandon encontrava-se em pé ao seu lado, e o pai de ambos, Lorde Rickard, logo atrás. Ao longo das paredes, figuras entrevistas deslocavam-se por entre as sombras, vultos pálidos com longos rostos severos. Vê-los fez Theon estremecer de um medo afiado como uma faca. E então as altas portas abriram-se com estrondo, e uma gélida rajada soprou pelo salão, e Robb saiu, a pé, da noite. Vento Cinzento vinha ao seu lado, com os olhos em fúria, e homem e lobo sangravam de meia centena de feridas cruéis.
Theon acordou com um grito, assustando Wex de tal maneira que o rapaz fugiu nu do quarto. Quando os guardas irromperam no quarto, de espada na mão, ordenou-lhes que trouxessem o meistre. Quando Luwin chegou, desgrenhado e sonolento, uma taça de vinho tinha firmado as mãos de Theon, e ele sentia-se envergonhado de seu pânico.
– Um sonho – murmurou –, não passou de um sonho. Não quis dizer nada.
– Nada – concordou solenemente Luwin. Deixou-lhe uma poção para dormir, mas Theon despejou-a pelo poço da latrina no momento em que o meistre saiu. Luwin era meistre, mas também homem, e o homem não tinha qualquer simpatia por ele. Quer que eu durma, sim… que durma para nunca mais acordar. Gostaria disso tanto quanto Asha.
Mandou chamar Kyra, fechou a porta com um pontapé, subiu nela e fodeu a criada com uma fúria que nunca soube que existisse em si. Quando acabou, ela soluçava, com o pescoço e os seios cobertos de hematomas e marcas de mordidas. Theon empurrou-a para fora da cama e atirou-lhe uma manta.
– Fora.
Mas, mesmo então, não conseguiu dormir.
Ao chegar a alvorada, vestiu-se, saiu e foi caminhar ao longo das muralhas exteriores. O vento vivo de Outono que rodopiava através das ameias deixou seu rosto vermelho e feriu seus olhos. Observou a floresta enquanto ela passava de cinzenta a verde, à medida que a luz se infiltrava através das árvores silenciosas. À esquerda viam-se o topo de torres por cima da muralha interior, com os telhados dourados pelo sol nascente. As folhas vermelhas do represeiro eram um clarão de chamas na vastidão verde. A árvore de Ned Stark, pensou, e a floresta dos Stark, o castelo dos Stark, a espada dos Stark, os deuses dos Stark. Este é o lugar deles, não meu. Sou um Greyjoy de Pyke, nascido para pintar uma lula gigante no meu escudo e velejar pelo grande mar salgado. Devia ter ido com Asha.