Daquela vez sonhou que estava num banquete, um banquete de vitória num grande salão qualquer. Tinha um lugar elevado no estrado, e os homens levantavam as taças e saudavam-no como herói. Marillion estava lá, o cantor que tinha atravessado com ele as Montanhas da Lua. Tocava a harpa e cantava sobre os ousados feitos do Duende. Até o pai sorria com aprovação. Quando a canção terminou, Jaime levantou-se da cadeira, ordenou que Tyrion se ajoelhasse, e tocou-lhe, primeiro num ombro e depois no outro, com a sua espada dourada, e voltou a ficar de pé como cavaleiro. Shae estava à espera para abraçá-lo. Pegou-o pela mão, rindo e brincando, chamando-o de seu gigante de Lannister.
Acordou na escuridão de um quarto frio e vazio. As cortinas tinham sido de novo cerradas. Sentia que algo estava errado, revirado, embora não soubesse dizer o quê. Estava de novo só. Afastando as mantas, tentou se sentar, mas a dor era excessiva e rapidamente cedeu, com a respiração irregular. O rosto era o de menos. Seu lado direito era uma única dor enorme, e uma punhalada de dor trespassava seu peito sempre que erguia o braço. O que me aconteceu? Até a batalha parecia quase um sonho quando tentava recordá-la. Fui ferido com mais gravidade do que pensava. Sor Mandon…
A memória o assustou, mas Tyrion obrigou-se a suportá-la, a revirá-la na cabeça, a olhar bem para ela. Ele tentou me matar, não há dúvida. Essa parte não foi um sonho. Ele teria me cortado em dois se Pod não tivesse… Pod, onde está Pod?
Rangendo os dentes, agarrou as cortinas da cama e as puxou. Estas soltaram-se do dossel e caíram, metade sobre as esteiras e metade sobre ele. Mesmo aquele pequeno esforço o deixou tonto. O quarto rodopiou ao seu redor, todo ele paredes nuas e sombras escuras, com uma única janela estreita. Viu uma arca que lhe pertencia, uma pilha desarrumada de suas roupas, e sua armadura desgastada. Este não é o meu quarto, compreendeu. Nem sequer é a Torre da Mão. Alguém o mudara. Seu grito de raiva soou como um gemido abafado. Mudaram-me para cá para morrer, pensou enquanto desistia da luta e voltava a fechar os olhos. O quarto estava úmido e frio, e ele ardia.
Sonhou com um lugar melhor, uma pequena e aconchegante casa perto do mar do poente. As paredes eram tortas e rachadas e o chão era feito de terra batida, mas ali sentia-se sempre quente, mesmo quando deixavam o fogo da lareira extinguir-se. Ela costumava caçoar de mim por causa disso, recordou. Eu nunca me lembrava de alimentar o fogo, isso sempre tinha sido tarefa de um criado. “Não temos criados”, lembrava-me ela, e eu dizia: “Tem a mim, eu sou seu criado”, e ela dizia: “Um criado preguiçoso. O que fazem com os criados preguiçosos em Rochedo Casterly, senhor?”, e eu lhe dizia: “Beijam-nos”. Isso sempre a fazia rir. “Não fazem nada disso. Aposto que os espancam”, ela dizia, mas eu insistia: “Não, beijam-nos, exatamente assim”, e mostrava-lhe como. “Beijam seus dedos primeiro, um a um, e beijam seus pulsos, sim, e na parte de dentro dos cotovelos. Depois beijam suas orelhas engraçadas, todos os nossos criados têm orelhas engraçadas. Pare de rir! E beijam suas bochechas e beijam seus narizes com o altinho que eles têm, aí, assim, assim mesmo, e beijam suas lindas testas e os cabelos e os lábios, e as… mmmm… bocas… assim…”.
Passavam horas beijando-se, e dias inteiros sem fazer mais nada do que ficar refestelados na cama, escutando as ondas, e tocando-se. O corpo dela era para ele uma maravilha, e ela parecia encontrar prazer no dele. E às vezes cantava para ele. Amei uma donzela linda como o verão, com luz do sol nos cabelos.
– Amo você, Tyrion – sussurrava antes de irem dormir, à noite. – Amo seus lábios. Amo sua voz, e as palavras que me diz, e o modo gentil como me trata. Amo seu rosto.
– Meu rosto?
– Sim. Sim. Amo as suas mãos, e a maneira como me toca. O seu pau, amo seu pau, amo senti-lo dentro de mim.
– Ele também a ama, senhora.
– Adoro dizer seu nome. Tyrion Lannister. Combina com o meu. O Lannister não, a outra parte. Tyrion e Tysha. Tysha e Tyrion. Tyrion. Senhor Tyrion…
Mentiras, pensou, tudo fingido, tudo por ouro, ela era uma puta, a puta de Jaime, o presente de Jaime, a minha senhora de mentira. O rosto dela pareceu se desvanecer, dissolvendo-se por trás de um véu de lágrimas, mas mesmo depois de ter sumido, ainda conseguia ouvir o tênue e longínquo som de sua voz, chamando seu nome.
– … Senhor, consegue me ouvir? Senhor? Tyrion? Senhor? Senhor?
Através de uma névoa de sono de papoula, viu um rosto liso e cor-de-rosa inclinado sobre ele. Encontrava-se de volta ao quarto úmido com os reposteiros de cama rasgados, e o rosto não estava certo, não era o dela, era redondo demais, rodeado por uma barba castanha.
– Sente sede, senhor? Tenho o seu leite, o seu bom leite. Não deve lutar, não, não tente se mover, precisa de seu descanso – tinha o funil de cobre numa mão úmida e cor-de-rosa e um frasco na outra.
Quando o homem se inclinou para mais perto, os dedos de Tyrion enfiaram-se sob a sua corrente de muitos metais, agarraram-na, e puxaram. O meistre deixou o frasco cair, derramando leite de papoula por toda a manta. Tyrion torceu até ver os elos enterrarem-se na pele do gordo pescoço do homem.
– Mais. Não – coaxou, com uma voz tão rouca que nem teve certeza de ter falado. Mas parecia que sim, pois o meistre respondeu com uma voz estrangulada.
– Largue-me, por favor, senhor… precisa do seu leite, a dor… a corrente, não, largue, não…
O rosto cor-de-rosa estava começando a ficar roxo quando Tyrion largou o homem. O meistre recuou, sugando ar. Sua garganta enrubescida ostentava profundas estrias brancas nos locais que os elos tinham pressionado. Os olhos dele também estavam brancos. Tyrion levou uma mão até o rosto e fez um gesto de rasgar sobre a máscara endurecida. E outra vez. E outra.
– O senhor… quer as ataduras tiradas, é isso? – o meistre disse por fim. – Mas eu não devo… isso seria… seria muito insensato, senhor. Ainda não está curado, a rainha ficaria…
A menção à irmã fez Tyrion rosnar. Então é um dos seus? Apontou um dedo ao meistre e depois enrolou a mão num punho, esmagando, sufocando, uma promessa, a menos que o palerma fizesse o que lhe pedia.
Felizmente, ele compreendeu.
– Eu… farei o que o senhor ordena, com certeza, mas… isso é insensato, os seus ferimentos…
– Faça. Isso – daquela vez sua voz soou mais alto.
Com uma reverência, o homem saiu do quarto, retornando poucos momentos depois com uma longa faca com uma esguia lâmina serrilhada, uma bacia de água, uma pilha de panos macios, e vários frascos. A essa altura Tyrion já conseguira puxar-se para trás alguns centímetros, e estava meio sentado, apoiado no travesseiro. O meistre pediu-lhe para ficar muito quieto enquanto enfiava a ponta da faca sob seu queixo, por baixo da máscara. Um deslize de mão aqui, e Cersei vai se ver livre de mim, pensou. Sentia a lâmina cortando o linho endurecido, centímetros acima de sua garganta.
Felizmente aquele homem mole e cor-de-rosa não era uma das mais corajosas criaturas da irmã. Um momento mais tarde, sentiu o ar frio no rosto. Também havia dor, mas fez o melhor que pôde para ignorá-la. O meistre jogou as ataduras fora, ainda endurecidas pela poção.
– Fique quieto agora, tenho de lavar o ferimento – o toque dele era suave, a água, morna e calmante. O ferimento, pensou Tyrion, relembrando um súbito relâmpago de prata brilhante que tinha parecido passar bem por baixo dos olhos. – É provável que isso arda um pouco – preveniu o meistre enquanto umedecia um pano com vinho que cheirava a ervas esmagadas. Fez mais do que arder. Traçou uma linha de fogo ao longo de todo o rosto de Tyrion, e retorceu um atiçador em brasa por seu nariz acima. Seus dedos engalfinharam-se nos lençóis e prendeu a respiração, mas de algum modo conseguiu não gritar. O meistre cacarejava como uma galinha velha. – Teria sido mais sensato deixar a máscara no lugar até a pele estar unida, senhor. Mesmo assim, o ferimento parece limpo, ótimo, ótimo. Quando o encontramos no porão, entre os mortos e os moribundos, estava com os ferimentos imundos. Uma das costelas quebrada, sem dúvida pode senti-la, talvez por causa do golpe de alguma maça, ou de uma queda, é difícil dizer. E tinha uma flecha espetada no braço, aí onde se une ao ombro. Esse ferimento mostrava sinais de gangrena, e durante algum tempo temi que pudesse perder o braço, mas nós o tratamos com vinho fervente e larvas, e agora parece estar sarando bem…