“Senhor”, guinchou o corvo branco. “Senhor, senhor, senhor.”
– Um bobo canta o que quer – disse o meistre à sua ansiosa princesa. – Não deve levar suas palavras a sério. De manhã, ele poderá se lembrar de outra canção, e esta nunca mais será ouvida.
“Ele é capaz de cantar agradavelmente em quatro línguas”, escrevera Lorde Steffon…
Pylos entrou a passos largos:
– Meistre, as minhas desculpas.
– Você se esqueceu do mingau – Cressen completou, rindo. Aquilo não era do feitio de Pylos.
– Meistre, Sor Davos regressou ontem à noite. Estavam falando disso na cozinha. Achei que gostaria de saber de imediato.
– Davos… Ontem à noite, você diz? Onde está ele?
– Com o rei. Passaram juntos a maior parte da noite.
Em tempos passados, Lorde Stannis teria mandado acordá-lo a qualquer hora, para tê-lo junto a si, a fim de aconselhá-lo.
– Eu devia ter sido informado – queixou-se Cressen. – Devia ter sido acordado – desprendeu seus dedos dos de Shireen: – As minhas desculpas, senhora, mas tenho de falar com o senhor seu pai. Pylos, dê-me o braço. Há degraus demais neste castelo, e parece-me que acrescentam uns tantos todas as noites, só para me aborrecer.
Shireen e Cara-Malhada seguiram-nos, mas a menina rapidamente se cansou do passo rastejante do velho e correu na frente, com o bobo a balançar atrás dela, fazendo os guizos tinir loucamente.
Enquanto descia a escada em espiral da Torre do Dragão Marinho, Cressen percebeu, mais uma vez, que os castelos não são lugares amigáveis para homens frágeis. Lorde Stannis deveria estar na Sala da Mesa Pintada, no topo do Tambor de Pedra, a fortaleza central de Pedra do Dragão, assim chamada devido ao modo como suas paredes antigas estrondeavam e ressoavam durante as tempestades. Para chegar até ele, teria de cruzar a galeria, atravessar as muralhas intermediária e interna, com as suas gárgulas de guarda e portões de ferro negro, e subir mais degraus do que queria imaginar. Os jovens subiam degraus de dois em dois; para velhos com quadris em mau estado, cada degrau era um tormento. Mas Lorde Stannis não pensaria em encontrá-lo; então, o meistre resignava-se à provação. Pelo menos tinha Pylos para ajudá-lo, e sentia-se grato por isso.
Arrastando os pés ao longo da galeria, passaram na frente de uma fileira de altas janelas arqueadas com uma vista privilegiada sobre a muralha exterior e a aldeia de pescadores, que se erguia mais adiante. No pátio, arqueiros disparavam contra alvos de treino aos gritos de “Encaixar, puxar, largar”. As flechas faziam um som que era como o de um bando de pássaros levantando voo. Guardas caminhavam sobre as muralhas, espreitando, por entre as gárgulas, a tropa acampada lá fora. O ar da manhã estava enevoado com a fumaça de fogueiras para cozinhar, num momento em que três mil homens se sentavam para quebrar o jejum sob os estandartes dos seus senhores. Para lá do acampamento, o ancoradouro encontrava-se repleto de navios. Nenhuma embarcação que tivesse sido avistada da Pedra do Dragão ao longo do último semestre fora autorizada a partir de novo. A Fúria de Lorde Stannis, uma galé de guerra com três conveses e trezentos remos, quase parecia pequena ao lado de alguns dos galeões e pesqueiros de casco largo que a rodeavam.
Os guardas à porta do Tambor de Pedra conheciam o meistre e o deixaram entrar.
– Espere aqui – disse Cressen a Pylos, já dentro da sala. – É melhor que eu fale com ele a sós.
– É uma longa subida, meistre.
Cressen sorriu:
– Pensa que me esqueci? Subi tantas vezes estes degraus que conheço cada um pelo nome.
No meio da subida, arrependeu-se da decisão. Tinha parado, para recuperar o fôlego e aliviar a dor na bacia, quando ouviu o raspar de botas na pedra e ficou cara a cara com Sor Davos Seaworth, que descia.
Davos era um homem franzino; a origem plebeia estava escrita em seu rosto comum. Um manto verde puído, manchado de sal e maresia, e desbotado pelo sol, envolvia seus ombros estreitos, por cima de um gibão e uns calções castanhos que combinavam com os cabelos e olhos da mesma cor. Uma bolsa de couro gasto pendia de uma correia passada em volta do pescoço. Sua barba curta estava bem salpicada de cinza, e usava uma luva de couro na mão esquerda mutilada. Quando viu Cressen, interrompeu a descida.
– Sor Davos – cumprimentou-o o meistre. – Quando retornou?
– Na escuridão da madrugada. A minha hora preferida.
Dizia-se que ninguém jamais manobrara um navio de noite com metade da destreza de Davos Mão-Curta. Antes de Lorde Stannis tê-lo armado cavaleiro, Sor Davos era o mais notório e esquivo contrabandista de todos os Sete Reinos.
– E?
O homem balançou a cabeça.
– É como o preveni. Não se levantarão, Meistre. Por ele, não. Não gostam dele.
Não, pensou Cressen. Nem nunca gostarão. Ele é forte, capaz, mesmo… sim, mesmo para além da sabedoria… Mas não basta. Nunca bastou.
– Falou com todos?
– Todos? Não. Só os que quiseram se encontrar comigo. Aqueles bem-nascidos também não gostam de mim. Para eles serei sempre o Cavaleiro das Cebolas.
A mão esquerda fechou-se, com os dedos curtos formando um punho; Stannis cortara suas pontas, exceto a do polegar.
– Dividi a mesa com Guilan Swann e o velho Penrose, e os Tarth consentiram num encontro à meia-noite num bosque. Os outros… Bem, Beric Dondarrion desapareceu, alguns dizem que está morto, e Lorde Caron está com Renly. Bryce, o Laranja, da Guarda Arco-Íris.
– A Guarda Arco-Íris?
– Renly criou sua própria Guarda Real – explicou o ex-contrabandista –, mas esses sete não usam o branco. Cada um tem a sua cor. Loras Tyrell é o seu Senhor Comandante.
Era justamente o tipo de ideia que atrairia Renly Baratheon; uma magnífica nova ordem de cavalaria, com maravilhosos novos trajes para proclamá-la. Ainda quando garoto, Renly já adorava cores brilhantes e tecidos belos, e também os seus jogos. “Olhem para mim!”, ele gritava enquanto corria às gargalhadas pelos salões de Ponta Tempestade. “Olhem, sou um dragão”, ou “Olhem, sou um feiticeiro”, ou “Olhem, olhem, sou o deus das chuvas”.
O ousado rapazinho com cabelo negro bagunçado e risada nos olhos era agora um marmanjo, com vinte e um anos, e ainda jogava seus jogos. Olhem, sou um rei, pensou Cressen tristemente. Ah, Renly, Renly, querido filho, sabe o que está fazendo? E se importaria se soubesse? Haverá alguém que se preocupe com ele além de mim?
– Que motivos deram os senhores para as recusas? – perguntou a Sor Davos.
– Bem, quanto a isso, alguns usaram palavras suaves, e outros, rudes; alguns arranjaram desculpas, outros fizeram promessas; outros limitaram-se a mentir – e encolheu os ombros. – No fim das contas, as palavras não passam de vento.
– Não poderia lhe trazer alguma esperança?
– Só do tipo falso, e eu não faria isso – Davos respondeu. – De mim, ouviu a verdade.
Meistre Cressen recordou o dia em que Davos fora feito cavaleiro, depois do cerco a Ponta Tempestade. Lorde Stannis e uma pequena guarnição defenderam o castelo durante quase um ano contra a grande tropa dos senhores Tyrell e Redwyne. Até o mar lhes estava bloqueado, vigiado noite e dia por galés dos Redwyne, que ostentavam as bandeiras bordô da Árvore. Dentro de Ponta Tempestade, os cavalos há muito tinham sido comidos, os cães e os gatos desaparecido, e a guarnição, limitada a raízes e ratazanas. Então, chegou uma noite em que a lua era nova e nuvens negras escondiam as estrelas. Envolto nessa escuridão, Davos, o contrabandista, desafiou o bloqueio Redwyne e os rochedos da Baía dos Naufrágios. Seu pequeno navio tinha casco, velas e remos negros e um porão apinhado de cebolas e peixe salgado. Era pouco, mas manteve a guarnição viva durante tempo suficiente para que Eddard Stark chegasse a Ponta Tempestade e quebrasse o cerco.