Alguns dos senhores ficaram conversando em voz baixa fora do alcance do vento que soprava da fogueira. Todos caíram em silêncio quando viram que Davos os olhava. Se Stannis cair, vão me puxar para baixo num instante. Também não fazia parte do grupo dos homens da rainha, aquele grupo de cavaleiros ambiciosos e fidalgos menores que tinham se entregado àquele Senhor da Luz e ganhado assim o favor e a proteção da Senhora… não, Rainha, lembra-se?... Selyse.
O fogo tinha começado a morrer quando Melisandre e os escudeiros se afastaram com a preciosa espada. Davos e os filhos juntaram-se à multidão que se dirigia à costa e aos navios que os aguardavam.
– Devan portou-se bem – ele disse enquanto caminhavam.
– Sim, pegou a luva sem deixá-la cair – Dale confirmou.
Allard concordou com um meneio.
– Aquele símbolo no gibão de Devan, o coração em chamas, o que era aquilo? O brasão Baratheon é um veado coroado.
– Um senhor pode escolher mais do que um símbolo – Davos respondeu.
Dale sorriu.
– Um navio negro e uma cebola, pai?
Allard chutou uma pedra.
– Que os Outros levem a nossa cebola… e aquele coração em chamas. Foi coisa feia queimar os Sete.
– Quando foi que se tornou tão devoto? – perguntou Davos. – O que sabe um filho de contrabandista das coisas dos deuses?
– Eu sou filho de um cavaleiro, pai. Se o senhor não se recorda, por que eles o fariam?
– É filho de um cavaleiro, mas não é um cavaleiro – disse Davos. – E nem será nunca, caso se meta em assuntos que não lhe dizem respeito. Stannis é nosso rei de direito, não nos compete questioná-lo. Nós manobramos os seus navios e fazemos o que ordena. Só isso.
– Quanto a isso, pai – Dale falou –, não gostei daqueles barris de água que me deram para o Espectro. Pinho verde. A água vai estragar em qualquer viagem que se faça.
– Eu recebi o mesmo para o Senhora Marya – retrucou Allard. – Os homens da rainha apoderaram-se de toda a madeira seca.
– Falarei sobre isso com o rei – Davos prometeu. Era melhor que viesse dele do que de Allard. Os filhos eram bons guerreiros e melhores marinheiros, mas não sabiam como falar aos senhores. São malnascidos, como eu, mas não gostam de se lembrar disso. Quando olham para o nosso estandarte, tudo o que veem é um grande navio negro voando com o vento. Fecham os olhos à cebola.
O porto estava mais cheio do que Davos jamais o vira. Todas as docas lotadas de marinheiros carregando provisões, e todas as estalagens cheias de soldados jogando dados, bebendo ou em busca de uma prostituta… Uma busca vã, pois Stannis não autorizava prostitutas na sua ilha. Navios alinhavam-se na margem; galés de guerra e barcos de pesca, robustos galeões e cocas de fundo chato. Os melhores ancoradouros tinham sido ocupados pelos maiores navios: o navio almirante de Stannis, Fúria, balançava entre o Lorde Steffon e o Veado do Mar; o navio de casco prateado de Lorde Velaryon e seus três irmãos, Orgulho de Derivamarca; o ornamentado Garra Vermelha, de Lorde Celtigar; o pesado Peixe-Espada, com sua longa proa de ferro. Ancorada ao largo da costa, via-se a grande Valiriana, de Salladhor Saan, entre os cascos listrados de duas dúzias de galés lisenas menores.
Uma pequena e velha estalagem ficava na extremidade do cais de pedra, onde o Betha Negra, o Espectro e o Senhora Marya partilhavam a área de ancoragem com meia dúzia de outras galés de cem remos ou menos. Davos tinha sede. Despediu-se dos filhos e voltou para a estalagem. Junto à porta, acocorava-se uma gárgula que chegava à sua cintura, tão desgastada pela chuva e o sal que seus traços tinham sido praticamente obliterados. Mas ela e Davos eram velhos amigos. Deu uma palmadinha na cabeça de pedra ao entrar.
– Sorte – ele murmurou.
Na zona mais distante da ruidosa sala comum, Salladhor Saan estava em uma mesa, comendo uvas de uma tigela de madeira. Quando viu Davos, chamou-o com um gesto.
– Sor cavaleiro, venha comer comigo. Coma uma uva. Coma duas. Estão maravilhosamente doces.
O liseno era um homem lisonjeiro e sorridente, cuja ostentação era proverbial dos dois lados do mar estreito. Hoje, trajava um cintilante pano de prata com mangas pendentes tão longas, que as extremidades se amontoavam no chão. Os botões eram macacos esculpidos em jade, e no topo dos seus finos caracóis brancos empoleirava-se uma alegre boina verde decorada com um leque de penas de pavão.
Davos abriu caminho por entre as mesas até uma cadeira. Nos dias anteriores à sua nomeação como cavaleiro, trouxera frequentemente cargas de Salladhor Saan. O próprio liseno era contrabandista, bem como comerciante, banqueiro, notório pirata e o autoproclamado Príncipe do Mar Estreito. Quando um pirata enriquece o suficiente, fazem dele um príncipe. Tinha sido Davos quem fizera a viagem até Lys, a fim de recrutar o velho tratante para a causa de Lorde Stannis.
– Não viu os deuses arderem, senhor? – ele perguntou.
– Os sacerdotes vermelhos têm um grande templo em Lys. Andam sempre queimando isso e aquilo, chamando o seu R’hllor. Aborrecem-me com as suas fogueiras. Em breve, aborrecerão também o Rei Stannis, espera-se – não parecia nada preocupado em ser ouvido de outras mesas, comendo as uvas e empurrando os caroços para os lábios, jogando-os fora com um dedo. – Minha Ave de Mil Cores chegou ontem, meu bom sor. Não é um navio de guerra, mas mercante, e aportou em Porto Real. Tem certeza de que não quer uma uva? Dizem que as crianças passam fome na cidade – o homem balançou as uvas na frente de Davos e sorriu.
– É de cerveja que preciso, e de notícias.
– Os homens de Westeros estão sempre com pressa – lamentou-se Salladhor Saan. – De que serve, pergunto-lhe? Aquele que se apressa na vida, apressa-se a chegar à sepultura – arrotou. – O Senhor de Rochedo Casterly mandou seu anão tratar de Porto Real. Talvez tenha esperança de que a cara feia do homem assuste os atacantes, hã? Ou que morramos de rir quando o Duende der piruetas nas ameias, quem sabe? O anão botou o troglodita que comandava os homens de mantos dourados para correr e pôs no seu lugar um cavaleiro com uma mão de ferro – tirou uma uva do cacho e apertou-a entre o polegar e o indicador até fazer a pele estourar. O sumo correu entre seus dedos.
Uma criada abriu caminho até eles, dando tapas nas mãos que a apalpavam durante o percurso. Davos encomendou uma caneca de cerveja, virou-se de volta para Saan e disse:
– Como estão as defesas da cidade?
O outro encolheu os ombros:
– As muralhas são altas e fortes, mas quem irá guarnecê-las? Andam construindo balistas e catapultas de fogo, ah, claro, mas os homens de mantos dourados são poucos demais, verdes demais, e não há outros. Um ataque rápido, como um falcão caindo sobre uma galinha, e a grande cidade será nossa. Dê-nos vento para encher nossas velas, e seu rei poderá sentar no seu Trono de Ferro amanhã ao cair da noite. Poderíamos vestir o anão de quadriculado e espetar suas bochechinhas com as pontas das nossas lanças para obrigá-lo a dançar para nós, e talvez seu piedoso rei possa me presentear com a bela Rainha Cersei para aquecer a minha cama por uma noite. Há tempo demais que estou longe das minhas esposas, e sempre a seu serviço.
– Pirata – disse Davos. – Você não tem esposas, só concubinas, e foi bem pago por todos os dias e por todos os navios.
– Só em promessas – disse Salladhor Saan com ar fúnebre. – Meu bom senhor, é ouro que desejo, não palavras em papéis – enfiou uma uva na boca.