O tio da rainha Selyse era um autêntico barril, com braços grossos e pernas arqueadas. Possuía as orelhas proeminentes de um Florent, ainda maiores do que as da sobrinha. Os pelos grossos que brotavam das dele não o impediam de saber da maior parte das coisas que se passavam no castelo. Sor Axell servira durante dez anos como castelão em Pedra do Dragão, enquanto Stannis participava do conselho de Robert em Porto Real, mas nos últimos tempos tinha se tornado o mais destacado dos homens da rainha.
– Sor Davos, é bom vê-lo, como sempre – o homem disse.
– Igualmente, senhor.
– Também reparei em você hoje de manhã. Os falsos deuses arderam com uma luz feliz, não é verdade?
– Arderam brilhantemente – Davos não confiava naquele homem, apesar de toda sua cortesia. A Casa Florent tinha se declarado partidária de Renly.
– A Senhora Melisandre disse-nos que às vezes R’hllor permite que seus servos fiéis vislumbrem o futuro nas chamas. Pareceu-me, enquanto observava o fogo de manhã, que estava olhando para uma dúzia de belas dançarinas, donzelas vestidas de seda amarela que rodopiavam e redemoinhavam perante um grande rei. Penso que foi uma verdadeira visão, sor. Um vislumbre da glória que espera Sua Graça depois de tomarmos Porto Real e o trono, que é seu de direito.
Stannis não gosta nada de tais danças, pensou Davos, mas não se atreveu a ofender o tio da rainha.
– Eu vi apenas fogo – ele respondeu –, mas a fumaça estava deixando meus olhos com lágrimas. Perdoe-me, senhor, o rei aguarda – passou por Sor Axell, perguntando-se por que ele teria lhe dado trela. Ele é um homem da rainha, e eu sou do rei.
Stannis estava sentado à sua Mesa Pintada com o Meistre Pylos espreitando por sobre seu ombro, e uma pilha desordenada de papéis à frente dos dois.
– Sor – disse o rei quando Davos entrou –, venha dar uma olhada nesta carta.
Obedientemente, Davos escolheu um papel ao acaso.
– Parece bastante bonita, Vossa Graça, mas temo que não saiba ler as palavras – Davos podia decifrar mapas tão bem como qualquer outro, mas as cartas e os outros escritos estavam além do seu poder. Mas o meu Devan aprendeu as letras, e os jovens Steffon e Stannis também.
– Esqueci – um sulco de irritação apareceu entre as sobrancelhas do rei. – Pylos, leia.
– Vossa Graça – o meistre pegou um dos pergaminhos e pigarreou. – Todos sabem que sou filho legítimo de Steffon Baratheon, Senhor de Ponta Tempestade, e da senhora sua esposa, Cassana, da Casa Estermont. Declaro pela honra da minha Casa que meu querido irmão Robert, nosso falecido rei, não deixou legítima descendência do seu sangue, sendo o garoto Joffrey, o garoto Tommen e a moça Myrcella abominações nascidas de incesto entre Cersei Lannister e seu irmão Jaime, o Regicida. Pelo direito do nascimento e do sangue, reclamo neste dia o Trono de Ferro dos Sete Reinos de Westeros. Que todos os homens fiéis declarem a sua lealdade. Feito à Luz do Senhor, com a assinatura e o selo de Stannis da Casa Baratheon, o Primeiro do Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, e Senhor dos Sete Reinos – o pergaminho fez um suave ruído quando Pylos o pousou sobre a mesa.
– Escreva Sor Jaime, o Regicida, daqui em diante – disse Stannis, franzindo a sobrancelha. – Seja o que for além disso, o homem ainda é um cavaleiro. E também não sei se devíamos chamar Robert de meu querido irmão. Não me queria mais do que era forçado a querer, nem eu a ele.
– Uma cortesia inofensiva, Vossa Graça – Pylos observou.
– Uma mentira. Retire-a – Stannis virou-se para Davos. – O meistre disse-me que temos à disposição cento e dezessete corvos. Pretendo usar todos. Cento e dezessete corvos levarão cento e dezessete cópias da minha carta a todos os cantos do reino, da Árvore à Muralha. Talvez uma centena vença as tempestades, os falcões e as flechas. Se assim for, uma centena de meistres lerão as minhas palavras a outros tantos senhores em outros tantos aposentos privados e quartos de dormir… E então, o mais provável é que as cartas sejam entregues às chamas e os lábios se comprometam com o silêncio. Esses grandes senhores amam Joffrey, Renly ou Robb Stark. Eu sou o seu legítimo rei, mas vão me recusar se puderem. Por isso preciso de você.
– Estou às suas ordens, meu rei. Como sempre.
Stannis acenou com a cabeça.
– Desejo que leve o Bertha Negra para o norte, para Vila Gaivotas, os Dedos, as Três Irmãs, até Porto Branco. Seu filho Dale irá para o sul no Espectro, para lá de Cabo da Fúria e do Braço Partido, ao longo de toda a costa de Dorne até a Árvore. Cada um de vocês levará um baú cheio de cartas e entregará uma em cada porto, castro e aldeia de pescadores. Pregue-as nas portas dos septos e estalagens para que cada homem que saiba ler possa fazê-lo.
Davos respondeu:
– Serão bem poucos.
– Sor Davos fala a verdade, Vossa Graça – confirmou Meistre Pylos. – Seria melhor que as cartas fossem lidas em voz alta.
– Melhor, mas mais perigoso – Stannis retrucou. – Estas palavras não serão bem recebidas.
– Dê-me cavaleiros para a leitura – Davos pediu. – Isso terá mais peso do que qualquer coisa que eu possa dizer.
Stannis pareceu contente com a ideia.
– Sim, posso lhe dar esses homens. Tenho uma centena de cavaleiros que preferem ler a lutar. Seja direto onde puder, e furtivo onde for necessário. Use todos os truques de contrabandista que conhece, as velas negras, as enseadas escondidas, o que for preciso. Se faltarem cartas, capture alguns septões e faça-os copiar mais. Pretendo usar também seu segundo filho. Ele atravessará o Mar Estreito no Senhora Marya, até Bravos e as outras Cidades Livres, para entregar outras cartas aos homens que lá governam. O mundo passará a saber da minha pretensão, e da infâmia de Cersei.
Pode lhes contar, pensou Davos, mas acreditarão? Lançou um relance pensativo a Meistre Pylos. O rei reparou no olhar.
– Meistre, talvez devesse começar sua escrita. Necessitaremos de muitas cartas, e em breve.
– Como desejar – Pylos fez uma reverência e se retirou.
O rei esperou até ele sair, para só então dizer:
– O que é que não queria dizer na frente do meu meistre, Davos?
– Meu suserano, Pylos é bastante agradável, mas não consigo olhar para a corrente que ele tem em volta do pescoço sem sentir luto por Meistre Cressen.
– É culpa dele que o velho tenha morrido? – Stannis deu uma olhada para o fogo. – Nunca quis Cressen naquele banquete. Sim, ele tinha me irritado, tinha me dado maus conselhos, mas não o queria morto. Tive esperança de que lhe pudessem ser concedidos alguns anos de tranquilidade e conforto. Merecia pelo menos isso, mas… – rangeu os dentes – morreu. E Pylos serve-me com competência.
– Pylos é o de menos. A carta… Pergunto-me o que seus senhores pensaram dela.
Stannis fungou.
– Celtigar declarou-a admirável. Se lhe mostrasse o conteúdo da minha latrina, iria declará-lo igualmente admirável. Os outros sacudiram as cabeças para cima e para baixo como um bando de gansos, todos, menos Velaryon, que disse que o assunto seria decidido com aço, e não com palavras num pergaminho. Como se eu nunca tivesse suspeitado de tal coisa. Que os Outros levem os meus senhores. Quero ouvir a sua opinião.
– Suas palavras foram diretas e fortes.
– E verdadeiras.
– E verdadeiras. Mas não tem provas. Desse incesto. Não tem mais do que tinha há um ano.
– Há uma espécie de prova em Ponta Tempestade. O bastardo de Robert. O que ele gerou na minha noite de núpcias, exatamente na cama que tinham preparado para mim e para a minha noiva. Delena era uma Florent, e uma donzela quando ele a tomou, por isso Robert reconheceu o bebê. Chamam-no Edric Storm. Dizem que é a imagem e semelhança do meu irmão. Se os homens o vissem e depois voltassem a olhar para Joffrey e Tommen, não teriam como duvidar, penso eu.