– Mas como os homens poderão vê-lo se ele está em Ponta Tempestade?
Stannis tamborilou na Mesa Pintada com os dedos.
– É uma dificuldade. Uma de muitas – ergueu os olhos. – Tem mais a dizer a respeito da carta. Bem, prossiga com isso. Não o fiz cavaleiro para que aprendesse a proferir cortesias vazias. Para isso tenho meus senhores. Diga o que quer dizer, Davos.
Davos fez uma reverência:
– Há uma frase no fim. Como era? Feito à Luz do Senhor…
– Sim – o maxilar do rei estava apertado.
– Seu povo não gostará dessas palavras.
– Assim como você? – Stannis perguntou rispidamente.
– Se, em vez delas, dissesse: Feito à vista dos deuses e dos homens, ou Pela graça dos deuses, antigos e modernos…
– Tornou-se agora devoto, contrabandista?
– Essa era a pergunta que eu queria fazer ao senhor, meu suserano.
– Ah, era? Parece que não gosta mais do meu novo deus do que do meu novo meistre.
– Não conheço este Senhor da Luz – Davos admitiu –, mas conhecia os deuses que queimamos hoje de manhã. O Ferreiro manteve meus navios a salvo, ao passo que a Mãe me deu sete filhos fortes.
– Sua esposa lhe deu sete filhos fortes. Reza para ela? O que queimamos hoje de manhã foi madeira.
– Pode ser que sim – Davos respondeu –, mas, quando eu era rapaz no Fundo das Pulgas e andava pedindo moedas de cobre, às vezes os septões alimentavam-me.
– Quem o alimenta agora sou eu.
– O senhor me deu um lugar de honra à sua mesa. E, em troca, eu lhe dou a verdade. Seu povo não o amará se tirar dele os deuses que sempre adorou, e lhe der um que tem até um nome que soa estranho na língua que falam.
Stannis ficou em pé bruscamente.
– R’hllor. Por que será assim tão difícil? Eles não me amarão, você diz? Como posso perder algo que nunca possuí? – deslocou-se até a janela sul e ficou olhando o mar iluminado pela lua. – Deixei de acreditar em deuses no dia em que vi o Orgulho do Vento quebrar-se do outro lado da baía. Jurei que quaisquer deuses que fossem monstruosos a ponto de afogar minha mãe e meu pai nunca teriam a minha adoração. Em Porto Real, o Alto Septão gostava de tagarelar comigo sobre o modo como toda justiça e bondade emanavam dos Sete, mas tudo o que sempre vi foi que ambas eram feitas pelos homens.
– Se não acredita em deuses…
– … por que me perturbar com este novo? – Stannis o interrompeu. – Perguntei-me a mesma coisa. Pouco sei sobre deuses, e me preocupo com eles ainda menos, mas a sacerdotisa vermelha tem poder.
Sim, mas que tipo de poder?
– Cressen tinha sabedoria.
– Confiei na sabedoria dele e nas suas artimanhas, e o que foi que me trouxeram, contrabandista? Os senhores da tempestade mandaram-me embora. Fui até eles como pedinte e riram de mim. Pois bem, não haverá mais pedidos, e também não haverá mais risos. O Trono de Ferro é legitimamente meu. Mas como vou obtê-lo? Há quatro reis no reino, e três deles têm mais homens e ouro do que eu. Tenho navios… e tenho ela. A mulher vermelha. Metade dos meus cavaleiros tem medo até de dizer seu nome, sabia? Mesmo se não puder fazer mais nada, uma feiticeira que é capaz de inspirar tal terror em adultos não pode ser desprezada. Um homem assustado é um homem vencido. E talvez possa fazer mais. Pretendo verificar. Quando era rapaz, encontrei um açor ferido e tratei dele até que recuperasse a saúde. Chamei-o Asaltiva. Costumava se empoleirar no meu ombro, esvoaçar de sala em sala atrás de mim e comer na minha mão, mas não voava alto. Uma vez ou outra levei-o à caça, mas nunca subiu mais alto do que as copas das árvores. Robert chamou-o Asafraca. Ele tinha um falcão-gerifalte chamado Trovão que nunca errava um ataque. Um dia, nosso tio-avô, Sor Harbert, disse-me para experimentar outra ave. Disse que estava fazendo papel de idiota com Asaltiva, e tinha razão.
Stannis Baratheon virou as costas para a janela e para os fantasmas que se deslocavam pelo mar do sul.
– Os Sete nunca me trouxeram nem um pardal. É tempo de experimentar outro falcão, Davos. Um falcão vermelho.
Theon
Não havia ancoradouro seguro em Pyke, mas Theon Greyjoy queria ver do mar o castelo do pai, para voltar a observá-lo como o vira pela última vez, dez anos antes, quando a galé de guerra de Robert Baratheon o levara da ilha para se tornar protegido de Eddard Stark. Naquele dia, tinha permanecido junto à amurada, escutando o bater dos remos e o ressoar do tambor do mestre enquanto via Pyke se tornar cada vez menor com a distância. Agora queria vê-lo crescer, erguer-se do mar à sua frente.
Obediente aos seus desejos, o Myraham abriu caminho para lá do cabo com as velas batendo, com o capitão amaldiçoando o vento, a sua tripulação e as loucuras dos fidalgos bem-nascidos. Theon puxou o capuz do manto, protegendo-se dos borrifos, e procurou a sua casa.
O litoral era todo feito de rochedos aguçados e falésias carrancudas, e o castelo parecia ser um só com as torres, muralhas e pontes esculpidas da mesma rocha cinza-escuro, umedecido pelas mesmas ondas salgadas, com as mesmas manchas de musgo verde-escuro que se espalhavam parecendo uma grinalda, salpicado pelos excrementos das mesmas aves marinhas. A ponta de terra onde os Greyjoy tinham erguido sua fortaleza projetara-se em outra época como uma espada pelas entranhas do oceano, mas as grandes ondas tinham-na martelado dia e noite até que a terra se quebrou e se estilhaçou, milhares de anos antes. Apenas restaram três ilhas nuas e estéreis e uma dúzia de grandes pilares de rocha que se erguiam da água como as colunas do templo de algum deus marinho, enquanto as ondas iradas espumavam e quebravam ao redor.
Lúgubre, escuro, ameaçador, Pyke erguia-se sobre essas ilhas e pilares, quase como se fizesse parte delas, com a muralha exterior fechando o promontório para defender a base da grande ponte de pedra que se lançava do topo da falésia até a maior das ilhotas, dominada pelo sólido núcleo da Grande Fortaleza. Mais adiante ficavam a Fortaleza da Cozinha e a Fortaleza Sangrenta, cada uma erguida na sua própria ilha rochosa. Torres e edifícios externos agarravam-se aos rochedos que os rodeavam, ligados uns aos outros por arcadas cobertas quando os pilares ficavam perto, ou por longas pontes suspensas de madeira e corda quando eram distantes.
A Torre do Mar erguia-se da ilha mais afastada, na ponta da espada quebrada; a mais antiga parte do castelo, alta e redonda, com o pilar de faces abruptas sobre o qual se erguia, meio corroído, pelo interminável bater das ondas. A base da torre tinha se tornado branca com séculos de acúmulo de sal, os andares superiores verdes com o musgo que rastejava sobre eles como um espesso cobertor, o topo irregular negro com a fuligem do fogo das vigias noturnas.
Por cima da Torre do Mar esvoaçava o estandarte do pai. O Myraham estava distante demais para que Theon visse mais do que o pano, mas sabia qual símbolo ostentava: a lula gigante dourada da Casa Greyjoy, com os tentáculos contorcendo-se e se esticando no fundo negro. A bandeira voava presa a um mastro de ferro, tremendo e retorcendo-se quando era atingida por uma rajada de vento, como uma ave que lutava para levantar voo. O melhor de tudo era que, aqui, o lobo gigante dos Stark não voava mais alto, não lançava sua sombra sobre a lula gigante dos Greyjoy.
Theon nunca tinha visto algo mais entusiástico. No céu atrás do castelo, a bela cauda vermelha do cometa era visível através de nuvens esparsas e rápidas. Ao longo de todo o caminho entre Correrrio e Guardamar, os Mallister tinham discutido seu significado. É o meu cometa, disse Theon a si mesmo, enfiando uma mão no manto debruado de peles para tocar a bolsa de oleado acomodada no seu bolso. Lá dentro estava a carta que Robb Stark lhe dera, um papel que valia uma coroa.