Stannis olhou sua senhora estreitando os olhos, até que Cressen não conseguiu dominar a língua.
– Não se deve pensar em tal coisa. Vossa Graça, sejam quais forem as loucuras que Renly cometeu…
– Loucuras? Eu chamo de traições – então, Stannis voltou-se para a mulher. – Meu irmão é jovem e forte e tem um vasto exército ao seu redor, e aqueles seus cavaleiros do arco-íris.
– Melisandre estudou as chamas e o viu morto.
Cressen ficou horrorizado.
– Fratricídio… Senhor, isso é uma maldade, impensável… Por favor, escute-me.
A Senhora Selyse olhou-o fixamente.
– E o que lhe diria, Meistre? Como ele poderá conquistar metade de um reino se for até os Stark de joelhos e vender nossa filha a Lysa Arryn?
– Já ouvi os seus conselhos, Cressen – Lorde Stannis os interrompeu. – Agora ouvirei os dela. Está dispensado.
Meistre Cressen dobrou o joelho rígido. Conseguia sentir os olhos da Senhora Selyse nas suas costas enquanto se arrastava lentamente até a saída da sala. Quando chegou ao fim da escada, só com muito esforço conseguia se manter em pé.
– Ajude-me – pediu a Pylos.
Depois de estar de novo a salvo nos seus aposentos, Cressen mandou o jovem embora e coxeou até a varanda novamente, para observar o mar junto de suas gárgulas. Um dos navios de guerra de Salladhor Saan passava pelo castelo, com o casco pintado com cores alegres, abrindo as águas cinza-esverdeadas enquanto os remos subiam e desciam. Ficou olhando-o até que desapareceu atrás de um promontório. Gostaria que os meus temores desaparecessem assim tão facilmente. Teria vivido tanto tempo para isso?
Quando um meistre colocava seu colar, punha de lado a esperança de ter filhos; apesar disso, Cressen sentira-se frequentemente como um pai. Robert, Stannis, Renly… Três filhos que acabou educando depois de o mar em fúria ter reclamado Lorde Steffon para si. Teria feito um trabalho tão ruim, para agora ser forçado a ver um deles matar o outro? Não poderia permitir isso, não permitiria isso.
A mulher era a chave. Não a Senhora Selyse, a outra. A mulher vermelha, como os criados a apelidaram, com medo de dizer seu nome.
– Eu direi seu nome – disse Cressen ao seu mastim do inferno de pedra. – Melisandre. Ela.
Melisandre de Asshai, feiticeira, umbromante e sacerdotisa de R’hllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus da Chama e da Sombra. Melisandre, cuja loucura não se podia deixar espalhar para lá de Pedra do Dragão.
Os aposentos pareciam sombrios e lúgubres depois do brilho da manhã. Com mãos desajeitadas, o velho acendeu uma vela e a levou para a sala de trabalho sob a escada do viveiro, onde seus unguentos, poções e medicamentos estavam bem-organizados nas estantes. Na prateleira de baixo, atrás de uma fileira de bálsamos guardados em atarracadas vasilhas de barro, encontrou um frasco de vidro anil que não era maior do que seu dedo mindinho. Chocalhava quando o balançava. Cressen soprou uma camada de pó e o levou para a mesa. Deixando-se cair na cadeira, tirou a rolha do vidro e despejou o conteúdo do frasco. Um punhado de cristais, de tamanho próximo ao de sementes, tamborilou no pergaminho que ele acabara de ler. Brilhavam como joias à luz da vela, tão purpúreos que o meistre pensou jamais ter realmente visto aquela cor antes.
A corrente em torno do pescoço parecia-lhe muito pesada. Tocou ligeiramente em um dos cristais com a ponta do mindinho. Que coisa pequena para conter o poder da vida e da morte. Era feito de uma certa planta que crescia apenas nas ilhas do Mar de Jade, a meio mundo de distância. As folhas tinham de ser envelhecidas e embebidas numa loção de visgo, água de açúcar e certas especiarias raras vindas das Ilhas do Verão. Depois, podiam ser descartadas, mas a poção tinha de ser engrossada com cinzas e deixada cristalizar. O processo era lento e trabalhoso, e os ingredientes, caros e difíceis de adquirir. Mas os alquimistas de Lys conheciam-no, bem como os Homens Sem Cara de Bravos… E os meistres da sua ordem, apesar de não se tocar nesse assunto para lá das muralhas da Cidadela. O mundo inteiro sabia que um meistre forjava seu elo de prata quando aprendia a arte de curar… Mas o mundo preferia esquecer que os homens encarregados de curar também sabiam matar.
Cressen já não se lembrava do nome que os Asshai’i davam à folha, ou os envenenadores de Lys ao cristal. Na Cidadela, era simplesmente chamado “o estrangulador”. Dissolvido em vinho, fazia os músculos da garganta de um homem se fechar com mais força do que qualquer punho, obstruindo a traqueia. Dizia-se que o rosto da vítima ficava tão roxo como a pequena semente de cristal de onde tinha nascido sua morte, mas o mesmo acontecia com um homem que sufocasse com uma garfada de comida.
Naquela mesma noite, Lorde Stannis iria oferecer um banquete aos seus vassalos, à senhora sua esposa… E à mulher vermelha, Melisandre de Asshai.
Tenho de descansar, disse Meistre Cressen para si mesmo. Tenho de estar na posse de todas as minhas forças quando a noite chegar. Minhas mãos não podem tremer, minha coragem não pode fraquejar. É uma coisa horrível, mas tem de ser feita. Se existirem deuses, certamente me perdoarão. Andava dormindo tão mal ultimamente, que uma soneca seria restauradora para a provação que o esperava. Exausto, cambaleou até a cama. Porém, quando fechou os olhos, ainda conseguia ver a luz do cometa, vermelha, fogosa e vívida por entre a escuridão dos seus sonhos. Talvez seja o meu cometa, pensou, por fim, sonolentamente, momentos antes de ser tomado pelo sono. Um presságio de sangue, predizendo o homicídio… sim…
Quando acordou, era noite fechada, o quarto estava negro, e cada articulação do seu corpo doía. Cressen sentou-se com esforço, sentindo a cabeça latejar. Agarrando a bengala com força, pôs-se em pé, cambaleante. É tão tarde, pensou. Não me chamaram. Era sempre chamado para os banquetes, e sentava-se perto do sal, ao lado de Lorde Stannis. O rosto do seu senhor oscilou na sua frente, não o do homem que era, mas o do jovem que havia sido, sempre no frio da sombra, enquanto o sol jorrava sobre o irmão mais velho. Fizesse o que fizesse, Robert havia feito primeiro, e melhor. Pobre rapaz… Tinha de se apressar, para o bem dele.
O meistre encontrou os cristais onde os tinha deixado e os recolheu de cima do pergaminho. Cressen não tinha anéis ocos, daqueles que se dizia que os envenenadores de Lys preferiam, mas uma miríade de bolsos, grandes e pequenos, tinham sido costurados do lado de dentro das grandes mangas da sua toga. Escondeu as sementes de estrangulador num deles, escancarou a porta e chamou:
– Pylos? Onde está você? – diante da falta de resposta, voltou a chamar, mais alto: – Pylos, preciso de ajuda.
Continuou a não haver resposta. Era estranho; a cela do jovem meistre ficava apenas meia-volta da escada abaixo, bem ao alcance da sua voz. Por fim, Cressen foi forçado a chamar os criados.
– Apressem-se – disse-lhes. – Dormi demais. A esta altura já estão no banquete… bebendo… Deviam ter me acordado – que teria acontecido ao Meistre Pylos? Realmente não compreendia.
De novo teve de atravessar a longa galeria. Um vento noturno sussurrava através das grandes janelas, trazendo o cheiro vivo do mar. Tochas tremeluziam ao longo das muralhas de Pedra do Dragão, e no acampamento, que se estendia para lá delas, era possível ver centenas de fogueiras de cozinhar ardendo, como se um campo de estrelas tivesse caído sobre a terra. No alto, o cometa brilhava, vermelho e malévolo. Sou velho e sábio demais para temer esse tipo de coisa, disse o meistre para si mesmo.
As portas que abriam para o Grande Salão ficavam na boca de um dragão de pedra. Disse aos criados para que o deixassem do lado de fora. Seria melhor entrar sozinho; não devia aparentar fraqueza. Apoiando-se pesadamente na bengala, Cressen subiu os últimos degraus e coxeou por baixo dos dentes da entrada. Um par de guardas abriu as pesadas portas vermelhas à sua frente, libertando uma súbita explosão de som e de luz. Cressen penetrou no estômago do dragão.