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José Rodrigues dos Santos

A Filha do Capitão

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JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS nasceu em 1964 em Moçambique. Tal como a esmagadora maioria dos portugueses, alguns dos seus antepassados estiveram envolvidos na Grande Guerra, na Flandres e em África, e este romance é o tributo que lhes presta.

Apesar da faceta de romancista, o autor é sobretudo conhecido como jornalista.

Iniciou a carreira jornalística em 1980, na Rádio Macau. Trabalhou na BBC, em Londres, entre 1987 e 1990, e seguiu para a RTP, onde começou a apresentar o 24 Horas. Em 1991

passou para a apresentação do Telejornal e tornou-se colaborador permanente da CNN de 1993 a 2002.

Doutorado em Ciências da Comunicação, é professor da Universidade Nova de Lisboa e jornalista da RTP, ocupando por duas vezes o cargo de director de Informação da televisão pública. É um dos mais premiados jornalistas portugueses, tendo sido galardoado com dois prémios do Clube Português de Imprensa e três da CNN.

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José Rodrigues dos Santos/Gradiva - Publicações, L.a

Revisão do texto: José Soares de Almeida

Capa: Armando Lopes

Fotocomposição: Gradiva

Impressão e acabamento:

Multitipo - Artes Gráficas,

1. edição: Novembro de 2004

Depósito legal n. 217376/2004

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Ao meu bisavô materno,

o cabo Raúl Campos Tetino, que morreu após ser gaseado na Grande Guerra Ao meu avô paterno,

o capitão José Rodrigues dos Santos, que serviu no conflito de 1914-1918.

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“O pensamento mais fugaz obedece a um desenho invisível.” JORGE LUÍS BORGES, O Aleph

“O sentido do mundo emerge fora do mundo. No mundo, tudo é como é e acontece como acontece.”

“É muito difícil para os que fizeram a guerra lutar nos campos das letras com os paisanos que a descrevem à retaguarda em livros ou nos grandes jornais.

Para se desenhar em termos um acto heróico é preciso pelo menos um recuo de duzentos quilómetros.

De perto, a heroicidade confunde-se demasiadamente com as cousas que de heróico não têm a mínima parcela.”

ANDRÉ BRUN, A Malta das Trincheiras

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Afonso e Agnes

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I

Foi logo em pequeno que Afonso da Silva Brandão percebeu que a vida era uma estrada incerta, repleta de cruzamentos, bifurcações, pontes, túneis e becos, e que cada caminho encerrava um sem-número de mistérios, de segredos por desvendar e de enigmas por decifrar. Animado por uma curiosidade persistente e estimulado por uma inteligência viva e intuitiva, cedo começou a suspeitar de que o mundo era um sítio estranho, um enorme palco de ilusões, traiçoeiro e dissimulado, um dúplice jogo de espelhos onde tudo parecia caótico mas se revelava afinal ordenado, onde as coisas tinham certamente um sentido, mas não necessariamente um significado. Pressentiu, aliás, que era precisamente na existência de um significado que principiava o enigma do significado da existência.

Chegaria o tempo em que se interrogaria repetidamente sobre esse grande segredo, talvez um dos maiores e mais velhos mistérios do universo. A questão do significado da existência. O destino. Iria então tentar decifrar o sinuoso percurso da vida, o inefável caminho que os dias percorrem, um após outro, arrastando-o numa direcção obscura, a rota talvez previamente definida, quem sabe se escolhida por si ou forçada pelas circunstâncias, certamente condu-zindo-o através de uma labiríntica rede até ao inescapável fim, como se as coisas fossem fruto de uma conspiração na sombra, preparada por agentes sem rosto numa fantástica conjuração secreta. Procuraria aí a resposta para o enigma que o apoquentava.

Quando esse tempo viesse, Afonso suspeitaria de que a vida era afinal uma tragédia, ou talvez apenas uma grandiosa peça imaginada por um dramaturgo sem nome e representada por actores sonambulescos, intérpretes involuntários de um enredo desconhecido, personagens a quem ninguém jamais teve a gentileza de explicar a trama da história, a intriga que estava afinal determinada mas permanecia indeterminável. Talvez essa visão fosse fruto das circunstâncias particulares da sua existência, da sucessão de percursos inacabados que se tornara a sua vida. Confrontar-se-ia então com os sonhos adiados e os caminhos que não percorrera, dos dias que vivera guardaria apenas a cruel nostalgia do que poderia ter sido se as coisas se têm tornado diferentes. Nada era justo, tudo se revelava arbitrário, cada um limitava-se a procurar retirar um significado do caos da existência, 7

como se fosse importante criar uma narrativa, estabelecer um sentido, buscar uma razão, encontrar uma explicação para as coisas que simplesmente acontecem.

Na vida, concluiria um dia, todos têm direito a um grande amor. Uns achá-lo-iam num cruzamento perdido e com ele seguiriam até ao fim do caminho, teimosos e abnegados, até que a morte desfizesse o que a vida fizera. Outros estavam destinados a desconhecê-lo, a procurarem sem o descobrirem, a cruzarem-se numa esquina sem jamais se olharem, a ignorarem a sua perda até desaparecerem na neblina que pairava sobre o solitário trilho para onde a vida os conduzira. E havia ainda aqueles fadados para a tragédia, os amores que se encontravam e cedo percebiam que o encontro era afinal efémero, furtivo, um mero sopro na corrente do tempo, um cruel interlúdio antes da dolorosa separação, um beijo de despedida no caminho da solidão, a alma abalada pela sombria angústia de saberem que havia um outro percurso, uma outra existência, uma passagem alternativa que lhes fora para sempre vedada. Esses eram os infelizes, os dilacerados pela revolta até serem abatidos pela resignação, os que percorrem a estrada da vida vergados pela saudade do que poderia ter sido, do futuro que não existiu, do trilho que nunca percorreriam a dois. Eram esses os que estavam indelevelmente marcados pela amarga e profunda nostalgia de um amor por viver.

A vida é realmente um caldeirão de mistérios, a começar pelos mais simples, pelos mais ingénuos e inocentes, por aqueles que estão na génese da nossa existência. Afonso, por exemplo, nunca teve a certeza absoluta sobre a data exacta em que nasceu. Sabia que tinha sido em Março de 1890, embora alimentasse dúvidas quanto ao dia certo. A mãe dizia que o dera à luz à meia-noite e meia hora de 7 de Março, mas seria a meia-noite e meia hora da noite de 6 para 7 ou de 7 para 8? A questão nunca foi devidamente clarificada, apesar de, para todos os efeitos, a data de 7 de Março se ter tornado, nos documentos oficiais, o dia em que Afonso nascera.

O pequeno viu pela primeira vez a luz do dia numa casa humilde da Carrachana, um lugar ermo à entrada da vila ribatejana de Rio Maior. Era o sexto e último filho da senhora Mariana, uma mulher baixa e forte, as faces rechonchudas e rosadas, o cabelo meio-grisalho puxado para trás e preso por um carrapito, e cujo nome também ele estava envolto em absurdas incertezas. A mãe dizia que se chamava Mariana André Brandão, mas noutras alturas identificava-se como Mariana Silva André, ou Mariana da Conceição, ou Mariana das Dores. Afonso nunca entendeu este mistério, embora a tivesse questionado inúmeras vezes sobre o assunto, obtendo sempre respostas contraditórias ou evasivas. Os documentos oficiais de Afonso registavam que ele era filho de Mariana André Brandão, 8