“Jhat oh, Afonso, old bean”, cumprimentou.
O capitão ergueu-se, esfregou as palmas das mãos nas coxas para as limpar das migalhas das torradas e da gordura da manteiga e apertou a mão ao oficial inglês de ligação.
“Old bean? “, interrogou-se, abafando um arroto. “Por que é que me estás a chamar velho feijão, meu sacripanta “
Tim riu-se.
“Você não ligue, é uma forma amigável de nos exprimirmos. “ O inglês cumprimentou Pinto com um aceno.
“Breakfast? “, perguntou Afonso, indicando o que restava do pequeno-almoço.
“Não, obrigado, já comi”, indicou Tim. “Bacon com scrambled eggs and baked beans. “ Fez um ar satisfeito. “Capital breakfast. Capital. “
“Então, se é assim, vamos lá para a ronda. “
O capitão e os tenentes, com a ordenança atrás, desceram pela Picantin Road até à Rue Tilleloy, viraram à direita para apanharem Picantin Avenue, foram chapinhando na lama até chegarem à linha B, entraram nela junto ao posto avançado Flank Post e seguiram para sul em direcção a Rifleman's Avenue, circundando o seu sector em Fauquissart. Um 332
ronco distante no céu despertou-lhes a atenção. Pararam e ergueram os olhos. Do lado inimigo vinha o que parecia ser, lá longe, uma mosca incómoda, zumbia como uma varejeira, era um avião alemão, as cruzes negras visíveis na fuselagem apesar da distância.
“Um Tauber”, disse Pinto.
“Que mania que vocês têm de chamarem Tauber a todos os aeroplanos jerries”, notou Tim. “Aquilo é um Fokker”
O tenente Pinto olhou-o, desconfiado.
“Como é que sabe? “
“I know, Iad. know”
“O Tim sabe distingui-los”, explicou Afonso. “Ele andou no Royal Flying Corps e conhece os aeroplanos todos. Se o Tim diz que aquele é um Fokker, então, meu caro Cenoura, é porque aquele é mesmo um Fokker.”
O monoplano voava alto, como se quisesse passar despercebido. De repente, e de forma inesperada, alterou o seu comportamento. O avião picou em direcção às linhas portuguesas, sobre Fauquissart, parecia que iria abrir fogo.
“Vai largar uma abóbora”, exclamou Pinto.
Mas nenhuma bomba foi lançada. Já perto do solo, endireitou-se e sobrevoou as posições do CEP no sentido norte-sul a baixa altura. As Vickers e as Lewis desataram a matraquear, tentando atingir o aparelho, mas o Fokker ganhou altitude logo que cruzou Ferme du Bois, lá ao fundo. Subiu, deu uma pirueta e voltou a descer sobre as posições portuguesas, desta vez no sentido inverso, de sul para norte, embora não disparasse um único tiro, encontrava-se claramente em missão de observação. Um segundo aparelho irrompeu nessa altura sobre as linhas, agora proveniente do lado aliado.
“Um dos nossos”, comentou Pinto com satisfação. “ Que aeroplano é?”, quis saber Afonso, olhando para o tenente britânico.
“Um Sopwith Camel”, identificou Tim, de olhos fixos no céu. “Um camelo?“
“Right ho”, sorriu o inglês. “Está vendo o formato da carlinga do aeroplano? Há quem ache que aquilo parece uma bossa, embora eu não enxergue como. De qualquer modo, é por isso que lhe chamam camel. “
Os três oficiais e a ordenança ficaram pregados ao chão, na expectativa quanto ao que se iria passar. Os combates aéreos eram altamente apreciados nas trincheiras, sendo considerados o mais emocionante espectáculo da guerra. Em vez da morte impessoal e industrial no meio da lama, com massas de soldados a caírem varados por balas ou esfrangalhados por granadas e bombas lançadas por inimigos invisíveis e distantes, os confrontos no ar estavam envolvidos numa aura romântica, os pilotos eram os modernos 333
cavaleiros do céu, cheios de galanteios cavalheirescos e elegantes actos de nobreza, os seus embates aéreos transformavam-se em emocionantes duelos por entre as nuvens, um contra o outro, coragem contra coragem, perícia contra perícia, um vencedor e um vencido.
As trincheiras agitaram-se em antecipação, viam-se indicadores apontados para cima, soldados e oficiais chamaram-se uns aos outros, mais homens abandonaram os abrigos e juntaram-se aos que permaneciam especados a aguardarem o duelo. Mas um “oooh!
desapontado percorreu as linhas quando o avião alemão deu meia- volta e fugiu para as suas posições, recusando o combate. O Sopwith Camel ainda o perseguiu durante alguns minutos, mas voltou para trás e ficou a patrulhar os céus sobre Ferme du Bois, Neuve Chapelle e Fauquissart.
“Os jerries têm medo dos Sopwith Camel”, comentou Tim com um sorriso orgulhoso.
“ Porquê?”
“O Sopwith Camel é um aeroplano muito bom”, disse. “Mas, atenção, não é para qualquer um. É difícil de pilotar, costuma... como se diz, spin out of control... “
“ Ficar descontrolado “
“Yes, fica out of control nos... tight turns? “
“ Curvas apertadas. “
“Right ho”, confirmou o inglês. “Muitos aviadores pouco experientes morreram nestes aeroplanos. Mas os bons pilotos acham que o Sowith Camel é o melhor aeroplano que existe. É muito ágil e sobe em grande velocidade. É por isso que os grandes ases do Royal Flying Corps os pilotam. Os jerries sabem isso. Daí que tenham medo e fujam” Quando já ninguém esperava mais novidades, eis que emergiu do sector de Bois du Biez, nas linhas alemãs, um segundo avião. Os homens do CEP, muitos dos quais tinham já desmobilizado, voltaram a posicionar-se para assistirem ao grande espectáculo, agora com a certeza de que o combate era inevitável.
“Oh, blast it! Este é um Albatros D-type”, exclamou Tim, referindo-se ao novo aparelho alemão.
“ E então?”
“É o melhor aeroplano jerry. Voa a cento e setenta quilómetros por hora, tem uma excelente velocidade de subida e está equipado com duas metralhadoras sincronizadas. “
“O que é isso? “
“Metralhadoras sincronizadas? Well, o sincronismo é um mecanismo que permite aos pilotos disparar as metralhadoras através do... propeller? “
“Hélice. “
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“Right ho. Dispara através do... hélice, sem atingir as pás do hélice. “
“Da hélice. “
“Sorry. Da hélice. A hélice está ligada ao gatilho da metralhadora de uma forma que a impede de disparar sempre que uma pá fica à frente do cano da metralhadora, de modo a evitar que a pá seja destruída pelos tiros. No caso deste aeroplano, ele não tem apenas uma, mas duas metralhadoras sincroni-zadas com os movimentos da hélice. “
“O aeroplano inglês não tem essas metralhadoras? “
“Tem. “
“Então qual é o problema? “
“None whatsoever”, disse Tim. “Aqueles são os melhores aeroplanos dos dois lados. Vai ser a jolly good fight “
O Albatros alemão mergulhou em direcção ao Sopwith Camel. O confronto parecia iminente, mas o avião britânico deu subitamente meia- volta e, claramente em fuga, começou a ganhar altitude. Os oficiais e os soldados voltaram a suspirar de desapontamento, afinal iam mesmo ser privados daquele grande espectáculo.
“O bife está a pisgar-se”, protestou Pinto.
“Não percebo”, admirou-se Afonso.
“O gajo acagaçou-se, o que é que queres? “
O tenente inglês permaneceu calado, um rubor envergonhado a encher- lhe a cara enquanto via o Sopwith Camel em fuga. O aparelho britânico escondeu-se numa nuvem, mas o alemão não desistiu e, sempre no encalço, foi procurá-lo lá em cima. Quando o Albatros passou pela nuvem, o Sopwith Camel saiu disparado na sua direcção, como se se fosse esmagar no inimigo, endireitou-se no último instante, mesmo por cima do alemão, e largou uma bomba. O Albatros explodiu em pleno ar, foi envolvido pelas chamas e come-