çou a cair. Um novo “oooh!“, agora emocionado, ergueu-se das trincheiras. O avião atingido mergulhava velozmente em direcção ao solo, libertando um rasto de fumo negro, mas, quando todos esperavam o impacto, eis que o piloto alemão conseguiu controlar o aparelho e, apesar de ele estar envolto em línguas de fogo, curvou para leste e tentou levá-
lo de volta para as linhas alemãs. Os homens nas trincheiras sustiveram a respiração, colados ao esforço titânico do piloto inimigo. Já perto do solo, ainda sobre as linhas aliadas, os soldados viram uma figura tombar do aparelho fumegante, parecia uma bala disparada para baixo, a corrida abruptamente interrompida quando se esmagou no chão. Logo a seguir, o avião, já sem piloto, inclinou o nariz, desceu com rapidez e embateu violentamente na terra, rolando e rolando, era agora uma bola de fogo a desconjuntar-se, uma massa ardente a esfrangalhar-se, um bloco de lava a rodar no chão, incandescente. O
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silêncio abateu-se momentaneamente sobre as trin-cheiras, os homens mostravam-se petrificados com a cena. Quando os destroços flamejantes do Albatros se imobilizaram junto às paredes de umas ruínas, levantou-se uma salva de palmas das linhas portuguesas, eram os lãzudos, não a festejarem a morte do inimigo, mas a homenagearem-no no seu último voo de valente.
“O bife enganou-o bem”, comentou o tenente Pinto, dando meia-volta para prosseguir a ronda.
“Enganou-o a ele e a nós”, corrigiu Afonso, os olhos pregados no chão à procura das partes menos enlameadas onde assentar os pés. “Pensámos que se ia pôr ao pira, e afinal. “ A actividade recomeçou nas trincheiras. Uma metralhadora alemã abriu fogo à esquerda, o matraquear claramente audível, e a artilharia portuguesa respondeu com dois disparos de um morteiro pesado, pelo som todos identificaram um calibre de quinze centímetros, provavelmente um morteiro Hadfields. Os três oficiais e a ordenança encolheram-se um pouco mais na linha B, mas, tirando essa postura reflexiva, prosseguiram como se nada se passasse.
“O boche não estava nada à espera de levar com a bomba”, considerou Pinto. “Teve uma morte chata, a cair assim ao chão. “A alternativa era pior, believe me”, explicou Tim.
“Os pilotos morrem normalmente por três razões. “ Ergueu três dedos da mão esquerda à medida que enumerava as razões. “Ou são metralhados pelo inimigo, ou se esmagam no solo, ou morrem carbonizados vivos dentro dos aeroplanos. A morte pelas chamas é a pior.
“ Fez uma careta. “Ghastly! “ Bateu com a palma da mão direita no coldre. “Muitos pilotos levam sempre uma pistola à cintura e, se o aeroplano se incendeia e eles vêem que não podem escapar, dão um tiro na cabeça. “
“A sério?“
“No shit. “
Sempre a comentar as incidências do emocionante duelo aéreo, ainda mais dramático do que aqueles a que habitualmente assistiam todos os dias das linhas, chegaram a Rotten Row e viraram para dentro, cruzando a Rue Tilleloy e prosseguindo pela Regent Street até à Rue du Bacquerot, donde voltaram para a direita até Picantin Road, regressando ao posto depois de passarem pelas redes de arame farpado. Picantin Post era um pequeno reduto de perfil elevado, com duas posições descobertas para metralhadoras e um paiol e ainda três abrigos pequenos. Tinha capacidade para uma guarnição de cem homens e era defendido exteriormente por três abrigos para metralhadoras pesadas Vickers, construídos em tijolo e ferro e à prova de estilhaços, com seteiras viradas para a estrada e para Picadilly Trench. A sua importância era enorme, uma vez que defendia o acesso mais curto e directo das 336
primeiras linhas até Laventie, sendo por isso normal que se vissem ali bastantes homens.
Mesmo assim, Afonso notou um estafeta que se encontrava sentado à entrada do abrigo de Picantin. Quando os viu aproximarem-se, o soldado ergueu-se num pulo e fez continência.
“Capitão Afonso Brandão? “
“ Sim “
“Com a sua licença, meu capitão, o tenente-coronel Mardel deseja falar consigo. “ Eugénio Mardel era um dos mais altos oficiais da Brigada do Minho, o homem que assumia o comando da brigada sempre que o comandante se ausentava. Se Mardel o chamara, raciocinou Afonso, era porque havia novidades, e das grandes.
“Onde está o senhor tenente-coronel? “
“Em Laventie, meu capitão. “
Afonso entrou no abrigo, pegou na máquina de escrever e colocou-a sobre o caixote que lhe servia de mesa, sentou-se no banco, colocou duas folhas com papel químico no meio para fazer uma cópia e redigiu apressadamente o relatório da sua companhia sobre as últimas vinte e quatro horas no sector de Fauquissart. Sabia que Mardel iria querer ver o documento e não tencionava desapontá-lo. A redacção do texto obedecia a um formato previamente estabe-lecido e o capitão apenas precisou de meia hora para o concluir.
Quando acabou de dactilografar o texto, releu tudo, fez duas pequenas correcções com a caneta, assinou, dobrou o documento, meteu-o no bolso do casaco e saiu.
“Vamos lá”, disse ao abandonar o abrigo. “Pinto, substitui-me no posto. Até logo, Tim. “
“Cheerio, old bean. “
Não eram as dores nos músculos que incomodavam Matias, mas o cansaço e, sobretudo, a indisposição geral que o deixavam prostrado. O cabo perma-neceu encostado ao parapeito e aspirou com força o Xoodbine que tinha nas mãos, tratava-se do mais baratucho dos cigarros ingleses, embora servisse perfeitamente para o fim em vista. Sentiu o fumo invadir-lhe os pulmões, tentou descontrair as costas e expirou devagar, libertando um acre sopro cinzento.
“Como é que achas que ficou o corpo do tipo? “, perguntou Baltazar, sentado ao lado a limpar a Lee-Enfield.
“Quem? O gajo do aeroplano? “
“Sim. “
“Deve estar esfrangalhado, não é? “
Matias sentiu a acidez do vómito ainda presente na garganta e voltou a chupar o Xoodbine para tentar tirar aquele gosto azedo da boca. A noite não tinha sido fácil. Três 337
dias antes, um homem do 8 fora abatido na terra de ninguém, junto a Bertha Trench, durante uma patrulha nocturna, e os compa-nheiros fugiram desordenadamente, deixando-o para trás. Nas noites seguintes foram organizadas patrulhas para o localizar, mas apenas na madrugada anterior conseguiram enfim detectá-lo. Matias integrou esta última patrulha e foi o cheiro nauseabundo de um cadáver em putrefacção, um odor que lhe lembrava a pestilência libertada por batatas podres, que o atraiu para o local onde afinal se encontrava o corpo do homem perdido. Deu com ele dentro de uma cratera, semimergulhado em águas fétidas, à esquerda do sector português, já na área patrulhada habitualmente pelos ingleses estacionados em Fleurbaix. Depois de atingido, deve-se ter desorientado e arrastado até aqui, raciocinou Matias, reconstituindo mentalmente o itinerário do soldado mori-bundo. Não admira que as patrulhas não o tenham encontrado, pensou ainda, está muito longe do sítio onde se deu a escaramuça. O cabo inclinou-se sobre o cadáver para o levantar, mas congelou o gesto ao ouvir um ruído e sentir actividade a seus pés. Levou um instante a perceber que eram ratazanas a arrancarem pedaços de carne do morto. O cheiro era aqui forte, imundo, repugnante. Afugentou os roedores com a coronha da espingarda, colocou a Lee-Enfield a tiracolo e, vencendo o nojo, pegou no corpo, sentiu-o hirto e endurecido, caminhou umas dezenas de metros na escuridão, sempre a tentar conter a respiração, não conseguiu, o peso do cadáver fê-lo arfar, a pestilência invadiu-lhe as narinas, sentiu o estômago revoltar-se, deixou cair o morto, inclinou-se para a frente e vomitou. O barulho atraiu as atenções do resto da patrulha. Com sussurros mal contidos, os outros soldados vieram ajudá-lo a transportar o corpo pelo caminho de lama até às linhas portuguesas. Disseram a senha à sentinela e caíram na linha da frente portuguesa, aliviados. Pousaram o cadáver no chão e sentaram-se no parapeito, derreados e arquejantes, a recuperar o fôlego. Minutos depois um dos homens levantou-se e foi à procura dos maqueiros, deixando os restantes a descansar. A certa altura, já recupe-rados, veio-lhes a curiosidade de conhecerem o rosto do morto que tinham resgatado à terra de ninguém.