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“Hum”, foi tudo o que Afonso conseguiu dizer.

“E isso aí, está vendo? “, perguntou Tim, apontando para outras manchas. “São abrigos e latrinas. E ali está arame farpado.“

Com as fotografias devidamente interpretadas e a respectiva informação passada para o mapa, Afonso foi visitar as linhas para observar a área onde tencionava desencadear a operação. Tomou nota do sítio onde se encontravam os drenos, os pontos de difícil passagem, os renques de árvores, as posições de arame farpado e a localização de crateras para abrigo em caso de necessidade. Munido de um telémetro, mediu distâncias através de um engenhoso sistema de triangulação ocular, os olhos fixos no óculo, e foi registando as coordenadas. Inspeccionou postos de artilharia e ninhos de metralhadora, estudando as suas posições de tiro, e consultou os relatórios sobre as anteriores operações lançadas contra as posições inimigas, procurando extrair lições dos sucessos e fracassos.

A vida com Agnès assumiu entretanto aspectos de verdadeira vivência conjugal. A francesa já não estava hospedada no hotel de Merville. Tinha alugado um anexo de um casarão nos arredores de Béthune, a importante povoação mesmo a sul do sector do CEP.

Encontrava-se aí instalado o quartel-general do Corpo do Exército britânico, que guarnecia as linhas à direita das forças portuguesas, a sul de Ferme du Bois. Beneficiando da sua licença especial, Afonso passou a pernoitar em Béthune, quase fazendo vida conjugal com a francesa. Levava para o anexo delícias portuguesas que comprava na Cantina Depósito e que lhe transportavam para a Flandres os sabores da sua terra. Apresentou a Agnès o Ermida tinto maduro, o Bucellas branco e o Amarante verde, todos a menos de dois francos, mais um porto de 1870 que adquirira por oito francos. Também lhe deu a experimentar a ginja, que comprou a cinco francos, e ainda a bolacha Maria, cuja lata de um quilo lhe custou a astronómica quantia de dezoito francos. Beberam água Vidago-Sabrozo e 351

o capitão entre-gou-lhe bacalhau, que comprou a quatro francos e cinquenta cêntimos o quilo, ensinando-a a cozinhá- lo segundo uma receita que lhe rabiscara o Matos, o cozinheiro do batalhão.

Por vezes iam os dois visitar as tendas da YMCA para uma sessão de cinematógrafo.

Nesse final de Inverno assistiram ao sensacional Le mystère d'une nuit d'été, um melodrama romântico com Yvette Andreyor lavada em lágrimas do princípio ao fim, e ao exótico Cleopatra, com a sensual Theda Bara no prin cipal papel. Mas a pièce de résistance era, inevitavelmente, o grande Charlie Chaplin, que emergia depois do newsreel, o bloco de notícias da Pathé, para desencadear um terramoto de gargalhadas na tenda sobrelotada de soldados.

Durante este período, o capitão encontrou-se várias vezes com Mardel e com Montalvão para fazer um ponto da situação. O tenente- coronel foi-o mantendo a par da evolução dos acontecimentos, e a verdade é que cada vez havia mais coisas a relatar. Os diversos batalhões davam conta de um aumento da actividade das patrulhas e da artilharia inimiga, aumento que começou a ser notado sobretudo a partir do final de Fevereiro.

“Os boches sabem que estamos de rastos”, confidenciou Mardel com preocupação, exibindo uma mão-cheia de relatórios de operações e informações. “Capitão, preciso dessa operação para breve.“

“Daqui a alguns dias apresento-lhe o plano”, prometeu Afonso. “Acha que este aumento da actividade inimiga traz água no bico?”

“Afirmativo. Eles estão a preparar alguma. O quê, não sei, mas lá que os tipos andam a preparar alguma, lá isso andam.“

Afonso voltou às linhas para ultimar o plano. Sabia que, antes de o apresentar, teria ele próprio de efectuar uma patrulha pela terra de ninguém para reconhecer o terreno. Essa era uma actividade geralmente reservada aos soldados, todas as noites as forças portuguesas efectuavam mais de uma dezena de patrulhas e era relativamente raro ver oficiais a acompanhá-las. Mas, imper-tigado pelos confrontos verbais com o Cenoura e preocupado em elaborar com cuidado um plano para o raide, o capitão decidiu chefiar uma patrulha daí a três noites. Foi ter com o sargento Rosa e ordenou-lhe que preparasse um grupo de homens para a acção.

“Quero aquele matulão que consegue carregar a Luisa”, fez questão de indicar.

“Quem, meu capitão?”

“Aquele matulão, o grandalhão.“

“O cabo Matias Grande, meu capitão?“

“Esse mesmo. O que acha dele?“

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“O Matias é bom homem, bom soldado. É forte como um touro e esconde o medo, com ele os boches não fazem farinha. O pessoal gosta dele, sente-se seguro com o gajo por perto, os homens até combatem melhor quando estão ao lado do Matias.“

“Então esse que venha. Esse e mais uns quantos.“

“Exactamente quantas praças ao todo, meu capitão?“

“Homem, sei lá, umas cinco ou seis, não mais. Isto não é um raide, é uma patrulha de reconhecimento do terreno, tem de ser coisa discreta. Olhe, vou eu, vai você, vai o cabo latagão e mais uns três” Somou com os dedos. “Seis.“

“Vou chamar os homens do Matias, meu capitão.“

“Eles são bons?”

“Sim, meu capitão. O meu capitão chegou a comandá-los quando houve aquele ataque dos boches no ano passado ali em Neuve Chapelle. “

“Ah, já me lembro”, exclamou Afonso, fazendo uma expressão de reco-nhecimento.

“Eram bons, eram. Como é que eles se chamam?”

“São só três, meu capitão. O pelotão está muito desfalcado, temos de meter mais homens. Mas Lisboa não manda ninguém...“

“Adiante, homem”, impacientou-se o capitão. “Diga lá como é que eles se chamam.“

“Tem lá o Vicente Manápulas, que é um bocado refilão, protesta muito, é daqueles homens que fervem em pouca água e passa a vida a agoirar, até enerva. Mas na hora do aperto é teso que se farta, pode estar certo. O Baltazar Velho é uma espécie de paizinho do grupo, preocupa-se com o conforto e dá-lhes estabilidade. O problema é que é um lambuzão, só pensa em comida, e com esta dieta de corned-beef isso às vezes é mau para o moral. E o Abel Lingrinhas é do tipo calado, metido consigo. Não tem muita iniciativa, embora faça tudo o que lhe dizem. Pode estar borrado de medo, mas não se pira quando as coisas escacholam. “

“Está bem, esses que venham”

Afonso passou dois dias em nervosa actividade, preparando em pormenor a patrulha na terra de ninguém. Na manhã de 2 de Março, um estafeta foi chamá-lo e o capitão apresentou-se no quartel-general da 2. a Divisão, em La Gorgue, onde o mandaram sentar numa cadeira junto à entrada. Ficou quatro horas à espera, sem que ninguém lhe dissesse o que quer que fosse. Pela uma da tarde, Eugénio Mardel irrompeu apressadamente no edifício. Afonso ergueu-se num salto e fez continência. O tenente-coronel emitiu um grunhido maldisposto e fez-lhe sinal com a cabeça para o seguir. Percorreu o corredor em silêncio, entrou no gabinete e caiu pesadamente sobre a sua cadeira. Suspirou e ficou a aguardar que Afonso se sentasse.

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“Então já sabe da merda que houve esta manhã? “, perguntou-lhe finalmente, com ar cansado.

“Não, meu tenente-coronel”, admirou-se Afonso. “O que aconteceu?“

“Os boches fizeram-nos um raide em Neuve Chapelle e a coisa correu mal.“ Abanou a cabeça com ar desanimado. “Caíram-nos com tudo em cima. Artilharia, gases, morteiros, metralhadoras. Depois assaltaram as nossas posições em Chapigny em vagas sucessivas, ocuparam a primeira linha, chegaram às linhas de suporte e andaram para ali a passear-se durante duas horas, até a nossa artilharia os obrigar a retirar. “